Segundo estudo, o Rio São Francisco recebe por ano 23 milhões de toneladas de sedimentos. Na prática, é como se a cada ano um milhão de carretas de detritos fossem lançadas nas águas.
Quando o navegador Américo Vespúcio chegou à foz daquele imenso e caudaloso rio, em 4 de outubro do ano de 1501, os índios chamavam-no de Opará, em tupi. Ou rio-mar. Batizado de São Francisco, talvez possa se dizer: começava aí a sua lenta e gradual destruição.
Em 2019, exatos 518 anos depois, o Velho Chico registrou o mais baixo volume de água de sua história. Literalmente, está sendo soterrado. Ao todo, são 2.900 km de leito em uma bacia hidrográfica que irriga uma área quase igual à da França, abastecendo 13 milhões de pessoas. O leito minguou, sendo sugado de um lado, aterrado de outro, poluído por todos. No rio da integração nacional, em certos trechos, não se navega mais.
Os números desse assassinato progressivo e contínuo saltam de um estudo inédito realizado pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos e pela Companhia do Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf). Entre outros, o trabalho revela um dado assombroso: o leito do rio recebe por ano nada menos que 23 milhões de toneladas de sedimentos, da nascente na Serra da Canastra, em Minas, à foz no Oceano Atlântico, entre Alagoas e Sergipe. Na prática, é como se a cada ano um milhão de carretas de detritos fossem lançadas na água.
A revista CHICO teve acesso ao diagnóstico, fruto de um ano de levantamentos, que apontam que o soterramento do Velho Chico tem como uma das principais causas a ação humana, especialmente o desmatamento, que desencadeia uma série de outras consequências, em efeito cascata. “A taxa de erosão de cada uma das fontes sedimentar tem sido impactada pelas modificações humanas da paisagem, que levaram a um aumento geral na produção de sedimentos”, diz um dos trechos do relatório.
De acordo com a Codevasf, o objetivo foi verificar a origem do maior aporte de sedimentos no sistema. “O resultado mostrou que o assoreamento é proveniente da área produtiva, e não das margens”, revela a entidade. O levantamento foi feito com base em um modelo matemático que leva em consideração diferentes fatores, entre eles a formação de ilhas e depósitos de areia no leito.
“São vários os fatores que produzem o assoreamento de um rio, dentre eles a diminuição de suas vazões, processos erosivos em suas margens, a devastação de suas matas ciliares, o declínio de seus rios afluentes, a superexploração dos aquíferos que garantem o seu escoamento de base nos períodos secos e assim por diante”, explicou Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). “E todos esses fatores estão hoje presentes e se agravaram no São Francisco. Além disso, quando as chuvas finalmente chegam, ainda carregam excesso de sedimentos, fenômeno típico de qualquer bacia hidrográfica degradada”.
Segundo Anivaldo Miranda, o processo de assoreamento da calha agravou-se bastante em função da falta de chuva. “A estiagem que se prolonga desde 2013 forçou a diminuição controlada da defluência dos reservatórios hidrelétricos, notadamente do Reservatório de Sobradinho”.
Soluções polêmicas
Pesquisadores e técnicos que fizeram o estudo propõem intervenções para conter o assoreamento e aumentar o volume do leito, visando também garantir condições de navegação. No caso, a bacia do São Francisco – que é “doadora de águas” em um projeto de transposição para o Nordeste – passaria a receber recursos hídricos de outros rios. Os projetos incluem o desvio de água do Rio São Marcos para o Rio Paracatu (por túnel), do Rio Paranaíba para o Paracatu e do Rio Grande (saindo do vertedouro da Usina de Furnas) diretamente para o Velho Chico.
O estudo também registra um quarto projeto que foi cogitado pela Codevasf “para desviar água da Bacia do Tocantins para a Bacia do São Francisco”, que “não foi considerado” no relatório final. O trabalho apresenta ainda a proposta de construção de cinco barragens em cursos d’água da bacia: três barramentos no Rio Paracatu, um no Rio das Velhas (município de Santo Hipólito, Região Central) e outro no Urucuia, como forma de aumentar a capacidade de armazenamento e de normalização do curso.
Mas, se transposição e barragens são apontados no estudo como possíveis saídas para o rio, para ambientalistas e professores o mesmo tipo de obra de engenharia agravou os problemas do manancial e ainda pode ser fatal para a bacia. Um dos estudiosos do Cerrado no Brasil, Altair Sales Barbosa, professor aposentado da PUC de Goiás, destaca que a transposição do São Francisco tende a acelerar o processo de assoreamento. “As consequências da transposição serão danosas e, em curto espaço de tempo, levarão à morte a maioria dos afluentes do São Francisco, incluindo o próprio rio. Isso acontecerá porque a dinâmica das águas será alterada e o transporte de sedimentos arenosos aumentará de forma assustadora. Um dos resultados será o assoreamento, já que a maioria dos afluentes do São Francisco corre por áreas cuja característica principal é a ocorrência de um arenito frouxo”, alerta.
O presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, também desaconselha projetos de transposição na bacia do Velho Chico. “A Bacia do Rio São Francisco precisa é de um projeto de revitalização e recursos. Outros projetos de transposição, além do que já existe no Nordeste Setentrional, não são uma solução para esse momento”, comentou.
Um deserto a caminho
Outro grande problema que a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco enfrenta é o combate ao desmatamento que, inclusive, é uma das principais metas do Plano de Recursos Hídricos do São Francisco (PRHSF). De acordo com o diagnóstico que sustenta o plano, nada menos que 47% da vegetação de toda a extensão da bacia – o equivalente a 8% do território nacional – foi cortada. O quadro é ainda mais crítico em algumas áreas, como o trecho mineiro do Alto Médio São Francisco, onde a retirada da cobertura vegetal chega a 59%. O estudo alerta ainda para os riscos da desertificação, ampliados pela agricultura irrigada, que provoca salinização dos solos em áreas de drenabilidade deficiente ou nula.
De acordo com dados do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens e Satélites (LAPIS), vinculado à Universidade Federal de Alagoas (UFAL), 12,85% do Semiárido brasileiro enfrenta o processo de desertificação.
A estiagem prolongada também potencializa o processo da desertificação. A falta de chuvas, que se intensificou no ano de 2013, quando foi registrada a pior seca dos últimos 50 anos, aliada a outros fatores, deixa a paisagem ainda mais cinza, o chão rachado e um aspecto desértico, acarretando uma série de problemas sociais.
O professor Humberto Barbosa, coordenador do LAPIS, afirma que o processo de reversão da desertificação é possível, mas que representa um custo muito alto. “As áreas degradadas não têm mais vida, são desertas, e já correspondem a uma área considerável do Semiárido de Alagoas. Eu diria que entre 15% e 20% do solo já estão comprometidos. As chuvas podem ajudar a melhorar a situação, mas é preciso que o desmatamento e a exploração excessiva dos recursos naturais cessem”, enfatiza o professor.
O membro do CBHSF e especialista em Direito Ambiental, Marcelo Silva Ribeiro, esclarece, ainda, sobre as ações do CBHSF para combater o processo de desertificação na bacia. “O Comitê vem atuando fortemente em projetos voltados ao uso sustentável dos recursos hídricos. O CBHSF incorporou a filosofia de que é impossível combater a seca. O que se pretende é o convívio sustentável com as inevitáveis secas, de tal forma que os impactos provocados pela falta de chuvas regulares sejam mitigados mediante o uso racional da água”, diz.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
CBHSF
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Luiza Baggio
*Foto: Marcelo Andrê