Uma promessa de bilhões de reais, milhões de sonhos, décadas de história e inúmeros interesses políticos. O enredo da transposição do Rio São Francisco é cheio de personagens, dramas e lendas. O assunto traz debates sobre projetos faraônicos, demagogia, preconceitos regionais e o sonho de redenção social e econômica no Nordeste. Após rodar 2.600 km em três Estados, levantar dados e bastidores da obra, na semana da primeira visita oficial da presidente Dilma Rousseff à transposição o JC publica em partes, até sábado, este especial.
A transposição do São Francisco tomaria água do rio e distribuiria no Nordeste a partir deste ano – prometeu várias vezes, do início até os últimos dias de seu governo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar disso, até a presidente Dilma Rousseff, em sua atual gestão, não conseguirá concluir a obra secular, pensada pela primeira vez no Brasil de Dom Pedro II, em 1847. Foram 160 anos de espera até as obras, em 2007, início da contagem regressiva para a água do chamado Rio da Integração Nacional correr pelo Semiárido, para consumo humano e nos negócios. Cinco anos após o novo começo, o clima de abandono é visível em vários trechos da transposição. O controverso projeto virou unânime, mesmo entre críticos: a obra, irreversível, tem que sair, com qualidade e o menor prejuízo possível aos cofres públicos.
Até virar a transposição em sua versão atual, de canais, túneis e estações elevatórias, o projeto mudou muito, assim como o Nordeste. No século 19, a literatura romântica de José de Alencar, em O Sertanejo, de 1875, descrevia uma região isolada e rude, distante e sem avanços futuros como eletrificação rural. De qualquer cidade sertaneja, era possível contemplar “as noites do sertão, recamadas de estrelas rutilantes”.
A luz artificial hoje atrapalha a romântica vista do céu noturno nas cidades do interior, onde ainda há povoados miseráveis, com torneiras que passam mais de 15 dias sem água. A transposição sempre foi vista como a solução desse problema.
Mas o nordestino, cantava Luiz Gonzaga em 1972, em United States of Piauí, já havia trocado a garapa pela Coca-Cola e a calça de couro pelo jeans da marca Lee. A transposição também trocou de roupa.
Até o governo do ex-presidente Itamar Franco, o projeto era de um só grande canal, de Cabrobó, em Pernambuco, a Jati, no Ceará, com a água seguindo para bacias de rios e dali principalmente para o Rio Grande do Norte. Fernando Henrique Cardoso virou presidente, em 1994, prometendo fazer a transposição. Foi seu governo que ampliou o projeto para dois canais, o Eixo Norte, o original, mais o Leste, para beneficiar Pernambuco e Paraíba.
Secretário Estadual de Recursos Hídricos e Energéticos, José Almir Cirilo era secretário-adjunto de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente em 1997, na gestão do governador Miguel Arraes. Ele acompanhou as negociações com o time de FHC. “Fomos contra a proposta que estava apresentada porque ela não beneficiava em nada ou quase nada Pernambuco, que tem uma situação crítica de abastecimento. Não se podia aceitar uma proposta que não resolvesse essa questão. Nos perguntaram o que queríamos e apontamos a região do Agreste e alguns sistemas hídricos do sertão que poderiam ser beneficiados. Daí surgiu o Eixo Leste”, lembra.
O então ministro da Integração Nacional, o potiguar Fernando Bezerra (não confundir com o homônimo hoje na mesma pasta), era um entusiasta. Prometia licitação em 2000 e, em três anos, a secular obra pronta. Nada saiu. A oposição política era forte mesmo no Nordeste, em Sergipe, Alagoas e Bahia, Estados que, em tese, perderiam com a transposição. No dia 11 de outubro de 2001, em Uberaba (MG), FHC alegou razões ambientais e desistiu publicamente: disse que o rio deveria ser preservado e não transposto.
O que parecia um fim melancólico do projeto virou uma pausa. Sucessor de FHC, Lula resgatou a ideia com força. Negociou, usou a popularidade e peitou opositores: políticos, artistas ou ambientalistas. Na Bahia, o bispo do município de Barra, dom Luiz Flávio Cappio, fez duas greves de fome contra a obra, em 2005 e em 2007. Ganhou holofotes internacionais, mas perdeu a parada.
Lula criou um projeto para revitalizar o rio e sanear as mais de 400 cidades e povoados às suas margens. Também apresentou números diferentes. Manteve o teto de retirada de água de FHC,de 127 metros cúbicos por segundo (m³/s), 3% da vazão do rio, quando houvesse excesso no Reservatório de Sobradinho (BA). Mas propôs captar continuamente 26,4 m³/s, 1,42% da vazão. Diante da promessa técnica de haver limite na tomada de água, a resistência foi vencida. O ex-ministro Ciro Gomes, grande escudeiro de Lula na transposição, convocou o Exército para tirar o projeto do papel, em 2007, início do segundo governo Lula.
A obra foi dividida em 14 lotes. Mas algumas empreiteiras pediram aumento antes de começar. Três consórcios até desistiram.
Mesmo assim, Lula mantinha os prazos. Entregaria o Eixo Leste em 2010 e o Norte, em 2012. Assim, o governo que deu um enredo novo a um projeto tão antigo também deu início aos problemas da transposição no mundo real. Os bastidores dessa história recente foram marcados pela pressa diante eleitoral, o que atrapalhou do planejamento à execução do projeto. Os prejuízos estão a céu aberto: trechos de canais deteriorados antes mesmo de receberam água.
DA REDAÇÃO DO BLOG DE ASSIS RAMALHO
FONTE: JC