Na música Olha Pro Céu, gravada em 1951, o pernambucano Luiz Gonzaga eternizou as festas juninas - tradição no Nordeste - cantando sobre os balões, o baião, o xote e dizendo que até o céu entra em festa na noite de São João. Em 2020, essa festividade não será realizada em função do distanciamento social, recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como forma mais eficaz de reduzir a transmissão do novo coronavírus.
Nascida no estado de São Paulo, a professora Cristina de Lelis, de 40 anos, vive desde os 3 anos de idade na cidade de Caruaru, conhecida como Capital do Forró, no Agreste pernambucano. Há mais de 30 anos, ela sempre aguarda a chegada do São João e vive a festa com intensidade. "Estamos órfãos desse festejo aqui em Caruaru porque não se resume só ao dia 24, a festa começaria em 30 de maio e iria até o último final de semana de junho. Teríamos festa quase todos os dias, em vários lugares da cidade. É um ritual que a gente espera o ano inteiro. Concordo que não acontecer neste ano foi a decisão mais acertada, mas estou bem triste de não poder estar vivendo esta tradição fora de casa", afirma.
De acordo com a secretaria de saúde de Caruaru, o município tinha, no dia 18 de junho, 1.396 casos confirmados da covid-19, dentre os quais 100 foram a óbito. Além desses, foram registrados 8.758 casos de síndrome gripal, dos quais 1.452 estão em isolamento domiciliar. 90% dos leitos (73) dos sistema público de saúde de Caruaru estão ocupados.
Em função desse quadro, a cidade adotou um funcionamento de distanciamento social, seguindo as recomendações estaduais, para evitar aglomerações. Por isso, esta será a primeira vez em 40 anos que a festa pública do São João não será realizada no município.
Segundo o presidente da Fundação de Cultura e Turismo de Caruaru, Rubens Júnior, a administração pública tentou realizar a festa em formatos menos tradicionais, com shows online, mas não foi possível por falta de recursos. "Há uma recomendação do Tribunal de Contas do Estado e do Ministério Público de Pernambuco de que [neste momento de pandemia] os municípios não devem utilizar seus recursos para contratação de artistas. Tentamos até os 45 do segundo tempo fazer um evento com patrocinadores, para eles contratarem os artistas diretamente, mas no final da negociação, não foi possível seguir. É um momento muito triste para Caruaru, além de enfrentar uma pandemia, ter que abrir mão do São João. Para a população, é muito doloroso porque temos uma relação muito íntima com o São João e com a nossa história", afirma.
A designer Karla Vidal, de 38 anos, vem usando a criatividade na internet para combater a frustração de não ter São João neste ano. Karla criou uma playlist com mais de 6 horas de forró; fez videochamadas em datas importantes com jogos e brincadeiras sobre as tradições e lançou uma hashtag nas redes sociais para compartilhar elementos do São João com pessoas de outras cidades e estados.
"No ano passado, lancei a hashtag #UmaFotoDeFestaJuninaPorDia para compartilhar elementos dessa tradição com as pessoas de fora, agora, por causa do covid, decidi fazer novamente", conta Karla.
Para Caruaru, o prejuízo econômico pela não realização do São João, que anualmente atrai pessoas do Brasil todo, será de R$200 milhões, valor arrecadado aos cofres municipais nas festividades do ano passado. De acordo com a prefeitura de Caruaru, em 2019, cerca de 3 milhões de pessoas circularam pelos 24 polos do São João durante mais de 30 dias de festa. A movimentação gerou 6 mil empregos diretos e outros 12 mil indiretos.
Atenta ao impacto, a prefeitura está promovendo, há um mês, a campanha São João Caruaru Solidário (www.saojoaocaruarusolidario com.br), para arrecadar donativos de alimentação e higiene. "Estamos tendo uma boa adesão de empresas e da população de Caruaru e de outras cidades. Por meio desta campanha, já atendemos quase 4 mil pessoas da cadeia produtiva do São João de Caruaru. Além disso, criamos um delivery de alimentação para tentar impulsionar o comércio de comidas típicas neste ano, mesmo que de forma menos expressiva", afirma o presidente da Fundação de Cultura e Turismo de Caruaru.
Vera Torres, conhecida pelas Pamonhas da Tia Vera, vende comidas típicas na feira de Caruaru durante o São João há 10 anos. Por causa da pandemia, a neta dela, Isabel Torres, de 20 anos, começou a trabalhar no negócio, criou um perfil nas redes sociais e está administrando as encomendas e vendas deste ano. "Em dois ou três dias já se tornou um sucesso na internet, está até melhor que nos anos anteriores porque, com as pessoas em casa, sem poder sair para as festas, elas estão comendo mais comidas típicas", afirma Isabel. Até o dia 23 de junho, elas já estão com 100 pamonhas encomendadas.
Além de Caruaru, no Agreste, outro município de Pernambuco com festa de São João de grande expressividade que também vai ser afetada pela pandemia é Arcoverde, no Sertão. A cidade se intitula a "Capital do São João" e, nos últimos anos, tem sido alternativa de destino neste período do ano.
A cidade utiliza a estratégia de barreiras sanitárias para reduzir a circulação de pessoas de fora no município. Até o momento, foram abordados 881 carros.
"O São João é a nossa vitrine cultural, porém esse ano toda a atenção do nosso governo foi voltada à preservação das vidas. Estamos seguindo as recomendações de isolamento e o decreto do governo estadual. Sabemos o quanto isso impacta em nossa economia, mas a população de Arcoverde entendeu que o momento é de cuidados com a saúde e aceitou com muito respeito e atenção o cancelamento do evento. Confiamos que tudo isso vai passar e logo retomamos nossa movimentação, com a nossa cidade em ordem e as pessoas livres dessa pandemia", afirmou a prefeita de Arcoverde, Madalena Britto.
De acordo com a prefeitura, a edição de 2019 do São João de Arcoverde, realizada entre os dias 21 de maio e 19 de junho, contou com 540 mil pessoas circulando pelos polos artísticos e culturais da cidade e injetou 30 milhões na economia local. Em 2020, será realizado o São João em Casa, com duas lives solidárias compostas por artistas do município nos dias 23 e 24. A iniciativa tem o apoio do Sesc e de uma TV local.
"O incentivo à cultura com apoio a lives de artistas locais é uma forma de minimizar o impacto econômico no setor, além de manter a tradição junina de forma solidária", explica o presidente do Sistema Fecomércio/Sesc/Senac-PE, Bernardo Peixoto De acordo com levantamento da Fecomércio, 53% dos pernambucanos pretendem comemorar os festejos juninos em 2020, a maioria de forma diferente dos últimos anos, com shows online.
No Recife e em Olinda, as festas juninas de rua são menores, mas a tradição não. Lucidalva Barbosa, 56, mora no bairro de Rio Doce, em Olinda, com três irmãos, dois deles com mais de 60 anos, e está fazendo o que pode para manter a tradição da família. "Está proibido fazer fogueira neste ano por causa do coronavírus. Esta é a primeira vez, em muitos anos, que não vamos acender a nossa. Aqui em casa é tradição, minha mãe já fazia. Antes dela morrer, ela dizia para a gente dar continuidade. Ela era devota de São João Batista. Eu tenho até um quadro dele. E por causa dessa doença [a covid-19], não vai ter quadrilha, não vai ter fogueira, fogos [de artifício], mas vai ter canjica, pamonha, milho. Já coloquei as bandeiras e os balões em casa. O que der para fazer, a gente faz, liga um sonzinho para ouvir um arrasta-pé", afirma.
"Eu fico triste, todo o mundo fica, porque a animação da gente é ver as labaredas pegando fogo, aquela quenturinha, o fogaréu aceso e bonito na rua, as crianças correndo e brincando. Fico com saudade, mas coloco nas mãos de deus, porque a saúde é mais importante. Quando aparecer uma vacina vai ser melhor", finaliza Lucidalva.
Por Jornal do Commercio