
Por Cleber Lourenço - ICL Notícias
O Projeto de Lei nº 2.858/2022, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), é alvo de duras críticas por parte de juristas e advogados criminalistas, que veem na proposta uma tentativa de proteger os líderes e financiadores dos atos golpistas ocorridos após as eleições de 2022. O projeto concede anistia ampla a pessoas que participaram de manifestações entre 30 de outubro daquele ano e a data de entrada em vigor da eventual lei.
O texto prevê o perdão judicial para crimes políticos, eleitorais e quaisquer outros praticados por motivação política. A redação inclui não apenas participantes diretos, mas também organizadores, financiadores e pessoas que apoiaram os atos por meio de falas ou publicações em redes sociais. Multas e restrições de direitos aplicadas por decisões judiciais também seriam anuladas. Estão excluídos da anistia apenas crimes contra a vida, a integridade física, sequestro e cárcere privado.
Diversos dispositivos do projeto reforçam a tese de que o PL foi construído para beneficiar seus articuladores e financiadores:O artigo 1º anistia não só manifestantes, mas também “empresários” e “todos os que tenham participado” das manifestações, sem distinção entre autores e mandantes.
O parágrafo 2º inclui qualquer crime “relacionado com crimes políticos ou praticado por motivação política”, o que permite a inclusão de condutas graves praticadas por lideranças políticas ou militares.
O parágrafo 3º inclui explicitamente financiadores, organizadores e apoiadores de qualquer natureza, ampliando a anistia a quem não esteve fisicamente nas ruas, mas contribuiu com recursos ou discurso.
O artigo 3º extingue restrições judiciais de qualquer natureza, inclusive as relacionadas à imunidade parlamentar, liberdade de expressão e imprensa, permitindo a reversão de decisões judiciais contra deputados e comunicadores.
O parágrafo 6º perdoa crimes e condenações por litigância de má-fé em processos eleitorais relacionados à disputa de 2022. O trecho pode beneficiar diretamente o Partido Liberal (PL), legenda de Jair Bolsonaro, que foi multado pelo TSE por litigância de má-fé ao tentar questionar o resultado das urnas eletrônicas.
Na avaliação do advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, o projeto busca confrontar o Supremo Tribunal Federal ao empurrar ao Judiciário a responsabilidade de rejeitar a proposta. “Quem atentou contra a democracia não pode ser passível de ser beneficiado por um projeto de anistia”, afirmou. Para ele, a tentativa de votação visa constranger o STF e reforçar a estratégia de desmoralização institucional. “O grande interesse desse projeto são os que estão coordenando, que coordenaram a tentativa de golpe — os comandantes, patrocinadores, Bolsonaro, generais.”
Kakay ainda alerta que é inconstitucional qualquer tentativa do Congresso de reduzir penas impostas pelo STF em decisão transitada em julgado. “Passar a ideia que o Congresso Nacional pode simplesmente votar diminuindo uma pena é um factoide”, afirma. Segundo ele, o único caminho previsto é a revisão criminal dentro do próprio Judiciário, não uma decisão política do Legislativo.
O jurista Lenio Streck também critica o teor e a motivação do projeto. Em declaração pública, afirmou que todos os projetos de anistia em tramitação têm como objetivo final livrar a responsabilidade dos líderes. “Usam como argumento a raia miúda para esconder o objetivo de livrar a cara dos líderes e mandantes”, disse. Streck considera a proposta antirrepublicana e inconstitucional, acrescentando que sua eventual aprovação geraria uma crise institucional. “Anistia para golpista é antipolítica. Esse é o ponto.”

No PL da Anistia, Legislativo substitui o Judiciário
Para Streck, nenhum parlamentar sério assinaria um projeto que representa um “haraquiri na democracia”. Ele ironiza o grau de inconstitucionalidade do texto: “A matéria é tão inconstitucional que o porteiro do STF rejeitaria”.
O constitucionalista Pedro Serrano, por sua vez, aponta que esse tipo de anistia fere a própria natureza do processo legislativo. Segundo ele, embora formalmente seja uma lei, a anistia, nesse caso, é materialmente um ato político com destinatários certos e determinados. “O Legislativo pretende substituir o Judiciário ao fazer justiça ao aplicar a lei”, afirma. Ele classifica a proposta como um caso de “desvio de poder na função legislativa”, um abuso cometido pelo Congresso ao tentar determinar quem deve ou não ser punido, invadindo a competência exclusiva do Poder Judiciário.
Para Serrano, a anistia não está sendo proposta em um contexto de transição de regimes ou fundação de uma nova ordem jurídica, como ocorreu em outros países. “Claramente, a intenção é substituir o Judiciário no seu papel de aplicar a Constituição”, diz. Ele defende que a proposta é inconstitucional e um mau exemplo político e moral, que naturaliza o ataque ao Estado Democrático de Direito. “Isso só pode gerar tragédias históricas”, conclui.
Do ponto de vista técnico, o projeto apresenta uma formulação que, se aprovada, anistiaria crimes como dano ao patrimônio público, incitação ao crime, desacato, desobediência e até crimes eleitorais como corrupção e coação no curso do processo eleitoral. A anistia se estenderia ainda a ações judiciais com má-fé e manifestações em plataformas digitais. A ampla abrangência contrasta com a exclusão limitada a crimes contra a vida, o que, segundo especialistas, amplia o risco de impunidade para práticas que atentam contra o Estado Democrático de Direito.
Para os juristas ouvidos pela reportagem, o Congresso não tem competência para revogar sentenças transitadas em julgado ou modificar penas aplicadas pelo Judiciário, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes. O único instrumento possível seria uma ação revisional criminal junto ao STF, sustentada por fundamentos jurídicos específicos — caminho considerado legítimo e previsto em lei.
A proposta segue em discussão na Câmara dos Deputados. Nos bastidores, parlamentares aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro articulam para que o projeto seja pautado ainda no primeiro semestre de 2025.
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