
Crédito: Arquivo CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Estudantes em fila com mãos na cabeça durante invasão da polícia no campus da Universidade de Brasília - UnB. - (crédito: Arquivo/CB/D.A Press)
Por Bruna Pauxis - Correio Brziliense
“Era uma coisa terrível, eles pegavam os alunos e jogavam dentro dos caminhões, fechavam o camburão e levavam para a cadeia. Tinha um policial maior, de uns dois metros, gigante, chamávamos ele de king kong. Ele levantava dois meninos de uma vez”, lembra o professor da Universidade de Brasília (UnB) Volnei Garrafa, de 79 anos. Há cinco décadas andando pelos corredores do campus, ele se recorda do período da ditadura com detalhes, como se fosse, ainda ontem, o dia 6 de junho de 1977, quando militares invadiram a universidade, após discentes e docentes declararem greve contra as agressões sofridas. “Aquela invasão foi terrível, tiveram bombas, polícia espalhada pela UnB. Para você ter uma ideia, 62 alunos foram expulsos, mais da metade foram presos, enquadrados pela Lei de Segurança Nacional, quatro deles eram meus estudantes. Essas pessoas nunca voltaram para a universidade”.
Hoje, dia 1° de abril, há 61 anos, o país acordava em meio à ditadura militar, que perduraria pelos próximos 23 anos. Quem nasceu em 1964, só conheceria a democracia em seus 20 e poucos anos. Enquanto isso, muitos dos quais viviam sua juventude na época, enfrentaram perseguições, principalmente dentro das universidades do país, onde estudavam ou lecionavam.
Segundo Volnei, que foi diretor da Associação de Docentes da UnB (ADUnB), durante as décadas de repressão, dar aulas era uma constante pressão. “Durante uma aula no subsolo uma vez tive que expulsar um militar infiltrado. Nessa ocasião, o reitor começou a ficar de olho em mim. Eram tempos em que vivíamos com medo, a gente não dormia”, contou. Garrafa, que foi um dos criadores da ADUnB, conta que a associação surgiu como uma resistência dos professores. “Dos 800 professores, apenas 114 de nós nos juntamos para fundar a associação. Nos reuníamos no auditório da Associação Comercial do DF, porque o diretor era um conhecido democrata, que nos cedeu o espaço”, conta.

Dois anos após a criação do órgão, a assembleia ainda se reunia fora da UnB. “Em minha posse como diretor, me comprometi a levar a ADUnB para dentro do campus e assim o fiz. Fizemos nossas primeiras assembleias dentro do auditório 8 do ICC. O reitor começou a nos perseguir, fazíamos um boletim clandestino à noite, que era crítico ao regime”, lembra orgulhoso. Segundo ele, o comandante de Mar e Guerra, José Carlos de Almeida Azevedo, na época reitor da UnB, passou a fazer de tudo para a demissão do docente. “Em 1983 o reitor decidiu que me colocaria na rua, mas o Sindicato de Professores do Distrito Federal me colocou na diretoria, o que me garantiu imunidade sindical e fez com que eu não pudesse ser demitido”, explica. “Dois anos depois, em 1985 a ditadura acabou. Ele saiu da UnB e eu estou aqui, lecionando, até hoje”, diz o professor, contente.
O docente ainda lembra, de descobrir, após o final do regime, ter passado mais perigo do que imaginava. “Quando terminou a ditadura existia um Departamento de Segurança e Informação na UnB. Em listas escondidas lá, encontrei o meu nome, e de outros colegas, como indivíduos perigosos, como alvos”.
Memórias na reitoria
Dividindo o gabinete com o inimigo, o professor aposentado Marco Antônio Rodrigues recorda a época em que foi vice-reitor da universidade, quando o reitor era José Carlos Azevedo. “Quando fui nomeado ao cargo, não tinha como dar certo. Realmente não deu”, diz Rodrigues. Segundo o professor, que lembra hoje, sentado em sua casa na periferia sudoeste de Paris, sua época na capital, em 1976. Quando assumiu a vice-reitoria, o cenário do brasileiro já era favorável à abertura política, embora na UnB a realidade fosse diferente. “Havia na época o Decreto Lei 477, uma norma que definia infrações disciplinares para alunos, professores, funcionários e empregados de instituições de ensino. Na UnB ela não se aplicava, simplesmente porque o regimento interno da universidade era mais duro que o decreto”, diz.

O pesquisador relata que, na época, eram feitas diversas punições contra os alunos, muitos jubilados indevidamente de seus cursos. “Um dia o capitão de Mar e Guerra me pegou em um canto e me questionou por ser contra as punições. O princípio dele era que esses estudantes expulsos eram como células cancerígenas, que tinham que ser eliminadas para salvar o organismo”, conta. “Quando terminou essa conversa e eu voltava para casa, avisei minha mulher que eu havia criado um grande problema. Sabia que a partir daquele dia ele faria o que pudesse para me destruir e assim aconteceu”.

22/03/1983. Crédito: Wilson Pedrosa/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. José Carlos de Almeida Azevedo, reitor da Universidade de Brasília - UnB.(foto: Wilson Pedrosa/CB/D.A Press)
Rodrigues conta que, durante quatro anos de seu cargo como vice-reitor, foi impedido de trabalhar. “Todas as atribuições de meu cargo foram retiradas, o capitão me proibiu de trabalhar. Nesse período investigaram toda a minha vida. Tive os telefones todos grampeados, em casa e na faculdade”, recorda.
Em meio à tensão, Rodrigues resistia no cargo. Segundo ele, pelos seus alunos. Nomeado paraninfo dos formandos em Medicina da UnB do 2°. período de 1977, o professor discursou, em Janeiro de 1978, palavras de esperança aos seus alunos. “Estamos vivendo momentos importantes no País e creio que não é tempo para pessimismos, não se admitindo tampouco o conformismo. A festa de formatura não deve ser hora nem de ressentimentos, nem de frustrações. Com base no passado, vivendo intensamente o presente, é preciso olhar o futuro”, afirmou.
Professor Marco Antonio Rodrigues dias, antigo vice-reitor da Universidade de Brasília(foto: SEDOC CB/DA Press)
Amor e Resistência
Uma das alunas do professor, do curso de Jornalismo, viu a ditadura pelos olhos de uma estudante e, mais ainda, como mulher de um homem preso pelo regime. Em seu livro "O Indizível Sentido do Amor", a escritora e ex-professora da UnB, Rosângela Vieira Rocha, investigou a história de seu marido José Antônio Simões Filho, militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, após sua morte há mais de uma década atrás. O casal se conheceu enquanto estavam na UnB, quando José voltou do Rio de Janeiro para concluir o curso.
Rosângela Vieira com uma foto sua ao lado de seu marido, José Antônio(foto: Bruna Pauxis)
O físico não contava nada sobre seus dias de cárcere. "Eu descobri que quem é torturado nunca, ou pouco, fala sobre. O trauma é grande, é uma ferida que a pessoa não quer revisitar", disse a escritora. Quando conheceu José, em seus primeiros anos na UnB, ele havia acabado de voltar da prisão de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde esteve preso por 9 meses, após outros três meses torturado no DOPS. "Ele tinha um problema no ombro. Às vezes, o braço dele 'se soltava', era algum tipo de lesão nos tendões. Depois de muitos anos de casados, ele fez a cirurgia para corrigir e, então, me contou que o machucado havia aparecido quando preso, ao ser algemado. Usaram muita força", contou.
Seu marido, após formar-se na universidade, passou a lecionar, ainda nos anos 70, mas não permaneceu muito no cargo. "Na época eu não entendi porque ele não ficou. Depois me contou, brevemente, que achava estar sendo vigiado, perseguido de alguma forma. Como se estivessem de olho no que ele fazia. Simplesmente não havia mais clima para estar ali", disse Rosângela. "Penso que, pessoas como ele, se questionavam sempre se estavam paranóicos. Mas não era paranóia, as coisas estavam realmente acontecendo", completou.
José morreu em 2012, vítima de uma infecção. Apenas cinco anos depois, Rosângela passou a escrever sua obra. "Primeiro sofri o luto aquele luto bravo, não consegui escrever nada. Depois veio vindo, precisava escrever", contou Rosângela, que se reconecta com a trajetória do marido, por quem diz ser para sempre apaixonada, através da investigação de suas memórias na ditadura em seu romance autobiográfico.
Livro 'O Indizível Sentido do Amor' no qual Rosângela recorda a trajetória do marido durante a ditadura(foto: Bruna Pauxis)
Desaparecidos da ditadura
Na última sexta-feira foi lançado, na UnB, o Observatório de Desaparecimento de Pessoas no Brasil (Obdes), realizado pela universidade em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). A iniciativa, que reúne 17 pesquisadores de instituições de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, visa produzir conhecimento sobre as circunstâncias, dinâmicas e causas dos desaparecimentos no país, subsidiando políticas públicas. o lançamento do projeto ocorreu em um dia simbólico, o aniversário de Honestino Guimarães, ex-estudante da UnB e líder estudantil, que completaria 78 anos.
Honestino foi preso, aos 26 anos de idade, por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) no dia 10 de outubro de 1973, após já ter sido expulso da universidade em 1968, antes de finalizar a graduação. Apenas em 1996, após vinte anos sem resposta, sua família finalmente recebeu um atestado de óbito pelo governo federal, que reconheceu a responsabilidade pelo desaparecimento de Honestino.
o lançamento do projeto ocorreu em um dia simbólico, o aniversário de Honestino Guimarães, ex-estudante da UnB e líder estudantil, que completaria 78 anos. Aos 26 anos de idade, foi preso por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) no dia 10 de outubro de 1973, após já ter sido expulso da universidade em 1968. Apenas em 1996, após vinte anos sem resposta, sua família recebeu um atestado de óbito pelo governo federal, que reconheceu a responsabilidade pelo desaparecimento de Honestino.
"Falar sobre a memória do golpe militar e da ditadura que se seguiu a ele é importante para reativar a lembrança de tempos difíceis, de ataques fortes à democracia, em que várias pessoas da comunidade universitária foram desaparecidas e expulsas da universidade", afirma a reitora da Universidade de Brasília, Rozana Naves. "Então o Observatório é um instrumento que, para além de desenvolver uma importante política pública no Brasil, em parceria com o governo federal, pretende reparar danos históricos causados a essas famílias", completa.
UnB foi invadida quatro vezes durante a Ditadura
Crédito: Arquivo CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Estudantes em fila com mãos na cabeça durante invasão da polícia no campus da Universidade de Brasília - UnB.(foto: Arquivo/CB/D.A Press)
9 de abril de 1964: Apenas nove dias após o golpe militar, militares chegaram em 14 ônibus, com três ambulâncias já preparadas para possíveis confrontos. Salas de aula foram invadidas e estudantes revistados.
11 de outubro 1965: No dia 8 de setembro, professores entraram em greve por 24 horas em resposta à demissão dos professores Ernani Maria de Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas, afastados por "conveniência da administração". Os alunos aderiram ao movimento e a universidade foi cercada por militares. Alunos e professores eram impedidos de entrar.
29 de agosto de 1968: Alunos protestavam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, assassinado por policiais militares no Rio de Janeiro. Agentes das polícias Militar, Civil, Política (Dops) e do Exército invadiram a UnB e detiveram mais de 500 pessoas na quadra de basquete. Sessenta dos detidos acabaram presos e o estudante Waldemar Alves foi baleado na cabeça, tendo passado meses em estado grave no hospital.
6 de junho de 1977: Com a greve que estudantes e professores declararam para dar um fim às agressões que sofriam, militares invadiram a universidade, prenderam estudantes e intimaram professores e funcionários.
Rodrigues conta que, durante quatro anos de seu cargo como vice-reitor, foi impedido de trabalhar. “Todas as atribuições de meu cargo foram retiradas, o capitão me proibiu de trabalhar. Nesse período investigaram toda a minha vida. Tive os telefones todos grampeados, em casa e na faculdade”, recorda.
Em meio à tensão, Rodrigues resistia no cargo. Segundo ele, pelos seus alunos. Nomeado paraninfo dos formandos em Medicina da UnB do 2°. período de 1977, o professor discursou, em Janeiro de 1978, palavras de esperança aos seus alunos. “Estamos vivendo momentos importantes no País e creio que não é tempo para pessimismos, não se admitindo tampouco o conformismo. A festa de formatura não deve ser hora nem de ressentimentos, nem de frustrações. Com base no passado, vivendo intensamente o presente, é preciso olhar o futuro”, afirmou.

Amor e Resistência
Uma das alunas do professor, do curso de Jornalismo, viu a ditadura pelos olhos de uma estudante e, mais ainda, como mulher de um homem preso pelo regime. Em seu livro "O Indizível Sentido do Amor", a escritora e ex-professora da UnB, Rosângela Vieira Rocha, investigou a história de seu marido José Antônio Simões Filho, militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, após sua morte há mais de uma década atrás. O casal se conheceu enquanto estavam na UnB, quando José voltou do Rio de Janeiro para concluir o curso.

O físico não contava nada sobre seus dias de cárcere. "Eu descobri que quem é torturado nunca, ou pouco, fala sobre. O trauma é grande, é uma ferida que a pessoa não quer revisitar", disse a escritora. Quando conheceu José, em seus primeiros anos na UnB, ele havia acabado de voltar da prisão de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde esteve preso por 9 meses, após outros três meses torturado no DOPS. "Ele tinha um problema no ombro. Às vezes, o braço dele 'se soltava', era algum tipo de lesão nos tendões. Depois de muitos anos de casados, ele fez a cirurgia para corrigir e, então, me contou que o machucado havia aparecido quando preso, ao ser algemado. Usaram muita força", contou.
Seu marido, após formar-se na universidade, passou a lecionar, ainda nos anos 70, mas não permaneceu muito no cargo. "Na época eu não entendi porque ele não ficou. Depois me contou, brevemente, que achava estar sendo vigiado, perseguido de alguma forma. Como se estivessem de olho no que ele fazia. Simplesmente não havia mais clima para estar ali", disse Rosângela. "Penso que, pessoas como ele, se questionavam sempre se estavam paranóicos. Mas não era paranóia, as coisas estavam realmente acontecendo", completou.
José morreu em 2012, vítima de uma infecção. Apenas cinco anos depois, Rosângela passou a escrever sua obra. "Primeiro sofri o luto aquele luto bravo, não consegui escrever nada. Depois veio vindo, precisava escrever", contou Rosângela, que se reconecta com a trajetória do marido, por quem diz ser para sempre apaixonada, através da investigação de suas memórias na ditadura em seu romance autobiográfico.

Desaparecidos da ditadura
Na última sexta-feira foi lançado, na UnB, o Observatório de Desaparecimento de Pessoas no Brasil (Obdes), realizado pela universidade em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). A iniciativa, que reúne 17 pesquisadores de instituições de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, visa produzir conhecimento sobre as circunstâncias, dinâmicas e causas dos desaparecimentos no país, subsidiando políticas públicas. o lançamento do projeto ocorreu em um dia simbólico, o aniversário de Honestino Guimarães, ex-estudante da UnB e líder estudantil, que completaria 78 anos.
Honestino foi preso, aos 26 anos de idade, por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) no dia 10 de outubro de 1973, após já ter sido expulso da universidade em 1968, antes de finalizar a graduação. Apenas em 1996, após vinte anos sem resposta, sua família finalmente recebeu um atestado de óbito pelo governo federal, que reconheceu a responsabilidade pelo desaparecimento de Honestino.
o lançamento do projeto ocorreu em um dia simbólico, o aniversário de Honestino Guimarães, ex-estudante da UnB e líder estudantil, que completaria 78 anos. Aos 26 anos de idade, foi preso por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) no dia 10 de outubro de 1973, após já ter sido expulso da universidade em 1968. Apenas em 1996, após vinte anos sem resposta, sua família recebeu um atestado de óbito pelo governo federal, que reconheceu a responsabilidade pelo desaparecimento de Honestino.
"Falar sobre a memória do golpe militar e da ditadura que se seguiu a ele é importante para reativar a lembrança de tempos difíceis, de ataques fortes à democracia, em que várias pessoas da comunidade universitária foram desaparecidas e expulsas da universidade", afirma a reitora da Universidade de Brasília, Rozana Naves. "Então o Observatório é um instrumento que, para além de desenvolver uma importante política pública no Brasil, em parceria com o governo federal, pretende reparar danos históricos causados a essas famílias", completa.
UnB foi invadida quatro vezes durante a Ditadura

9 de abril de 1964: Apenas nove dias após o golpe militar, militares chegaram em 14 ônibus, com três ambulâncias já preparadas para possíveis confrontos. Salas de aula foram invadidas e estudantes revistados.
11 de outubro 1965: No dia 8 de setembro, professores entraram em greve por 24 horas em resposta à demissão dos professores Ernani Maria de Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas, afastados por "conveniência da administração". Os alunos aderiram ao movimento e a universidade foi cercada por militares. Alunos e professores eram impedidos de entrar.
29 de agosto de 1968: Alunos protestavam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, assassinado por policiais militares no Rio de Janeiro. Agentes das polícias Militar, Civil, Política (Dops) e do Exército invadiram a UnB e detiveram mais de 500 pessoas na quadra de basquete. Sessenta dos detidos acabaram presos e o estudante Waldemar Alves foi baleado na cabeça, tendo passado meses em estado grave no hospital.
6 de junho de 1977: Com a greve que estudantes e professores declararam para dar um fim às agressões que sofriam, militares invadiram a universidade, prenderam estudantes e intimaram professores e funcionários.
Por Bruna Pauxis - Correio Brziliense
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