Personagem ganha fala pela primeira vez nos mais de 40 anos da encenação do Baile do Menino Deus e contracena com uma Maria negra. Na foto, Laís Senna e Lucas Dan, intérpretes de Maria e José (Foto: Luiza Maia)
A maior recriação artística com alma brasileira de uma das passagens mais simbólicas da história da humanidade ganha novos contornos poéticos e musicais sob a inovação cênica destinada a um personagem crucial: José, pai de Jesus, será interpretado no “Baile do Menino Deus: Uma brincadeira de Natal” por um sanfoneiro e recitará versos da safra do poeta pernambucano Manuel Bandeira. A inclusão de fala no papel, pela primeira vez nos mais de 40 anos de vida da obra, se filia à humanização progressiva da figura bíblica pela encenação e atende à filosofia essencial do espetáculo de refletir e harmonizar, no palco, elementos da tradição com a fluidez de aspectos da cultura e da representatividade do país. As apresentações da montagem declarada Patrimônio Cultural Imaterial do Recife em 2024 ocorrem nos dias 23, 24 e 25 de dezembro no Marco Zero da capital, com acesso gratuito, público estimado de 75 mil pessoas e transmissão ao vivo pelo YouTube.
A representação de José na montagem caberá ao pesquisador, poeta, brincante e sanfoneiro paraibano Lucas Dan, cuja carreira artística é forjada no forró e na poesia nordestina, com experiências em terreiros populares, circo e teatro de rua. “Estou muito feliz e honrado de representar José no Baile ao lado de uma equipe tão competente, sensível e sonhadora. É responsabilidade e encantamento inaugural tanto para o personagem como para mim e vejo a cultura dinâmica, com transformação com o tempo para contar a mesma história de formas diferentes, com novas cores, elementos, a arte se faz assim. Feliz que a fala será com poesia”, diz Lucas.
O músico contracena com a cantora, compositora, atriz e bailarina pernambucana Laís Senna, no papel de Maria pela segunda vez após a estreia em 2023. Formada em canto popular brasileiro pelo Conservatório Pernambucano de Música, a artista reproduz nas apresentações a influência poética, sonora e dançante absorvida dos cantadores do Sertão do Pajeú, dos forrozeiros do Agreste e dos brincantes típicos da Zona da Mata.
Criador e diretor do Baile do Menino Deus, o premiado escritor cearense radicado no Recife Ronaldo Correia de Brito atrela as mudanças introduzidas na representação de José a uma marcha contínua de humanização promovida pelo espetáculo de uma figura geralmente secundarizada ou pormenorizada nas narrativas artísticas e nos relatos históricos. “Em 21 anos do Baile, fomos, gradativamente, criando um perfil mais humano para José. Neste ano, é um músico, dança e, pela primeira vez, fala. Diz um poema adaptado de Manuel Bandeira”, explica Ronaldo, sobre o trecho delineado com versos para evidenciar a relação entre pai e filho, homem e divino.
O “Baile do Menino Deus: Uma brincadeira de Natal” ocupa há 21 anos o principal palco a céu aberto da capital pernambucana e é uma das três únicas atrações com espaço cativo no calendário oficial de espetáculos do local. A encenação constrói uma festa baseada em aspectos da cultura brasileira a partir da representatividade e da diversidade legada pelos povos formadores da identidade nacional - indígena, negro e ibérico - e contrapõe o imaginário de natal associado a regiões frias e marcado pela assimilação de estrangeirismos. Em vez de neves, trenós, renas, papai Noel, o Baile tem maracatu, frevo, caboclinho, reisados, pastoris, figuras do folclore nacional, revivências da tradição oral e popular.
O espetáculo escrito há 41 anos por Ronaldo Correia de Brito e Assis Lima, com músicas de Antônio Madureira, tem versão em livro com mais de 700 mil exemplares, se tornou paradidático distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) e inspira, todos os anos, inúmeras montagens Brasil afora. Já ganhou duas versões em filme (ambas disponíveis no YouTube, assim como o espetáculo de 2023) e, pela dinâmica própria da composição renovada anualmente, rito de passagem para vários artistas de expressão nacional, como Elba Ramalho, Chico César, Tizumba, Silvério Pessoa, entre outros.
Por Luiza Maia
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