domingo, outubro 13, 2024

Morador do Rio, filho de cangaceiros do bando de Lampião lembra história marcante de reencontro com o pai e a mãe, em Minas


Inácio é filho dos cangaceiros Moreno e Durvinha, expoentes do bando de Lampião — Foto: Fernando Lemos

Apesar de ser apenas um bebê quando viveu no bando de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, o pernambucano Inácio Carvalho Oliveira, de 86 anos, carregou por grande parte da vida o peso de ser filho do cangaço. Para fugir de constrangimentos e das zombarias, deixou Tacaratu, pequena cidade no interior de Pernambuco, para viver no Rio de Janeiro, onde o passado entre os cangaceiros seria omitido. Curiosamente, aproveitou a oportunidade para se tornar um homem da lei. Fez carreira na Polícia Militar, onde foi reformado. Atualmente, entre todos que estiveram no bando de Lampião, apenas ele e a própria filha do rei do cangaço, Expedita Ferreira, de 92 anos, estão vivos.

Inácio é casado e mora com Maria Odete Moraes Carvalho, com quem teve um casal de filhos, em Vista Alegre, na Zona Norte do Rio. Lúcido e saudável, costuma passear pela cidade e manter uma rotina com boas caminhadas.


PM reformado do Rio é o último nascido dentro do bando de Lampião

— Hoje, Inacinho e Expedita Ferreira, filha de Lampião e Maria Bonita, são as duas últimas pessoas que estiveram “dentro” do cangaço e com Lampião ainda em plena atividade, se assim podemos dizer. Embora Expedita tenha permanecido alguns dias com os pais, ela não nasceu no cangaço. Maria se ausentou para o parto. Ficou em um “coito” (esconderijo) até a criança nascer — explica Geraldo Antônio de Souza Júnior, pesquisador do cangaço e responsável pelo canal Cangaçologia, no YouTube.

Inácio Oliveira aos 67 anos, ao reencontrar os pais, Moreno e Durvinha, e os cinco irmãos em Mina — Foto: Acervo pessoal

O último dos cangaceiros foi José Alves de Matos, o Vinte e Cinco, natural de Paripiranga (BA). Ele morreu aos 97 anos em 2014, em Maceió (AL). Lampião, Maria Bonita e mais nove integrantes do bando não resistiram ao ataque da volante (força de segurança) na Grota do Angico, em Sergipe, em 1938.

Lembranças turvas

O filho do cangaço não sabia quase nada sobre suas origens. Tudo o que conhecia até os 67 anos era que os pais, os cangaceiros Moreno e Durvinha, expoentes do bando de Lampião, o haviam deixado com o padre Frederico Araújo, pároco da pequena Tacaratu, no interior de Pernambuco. Uma carta acompanhava a criança: trazia o nome dos avós. Os pais alegaram que o bebê, ao chorar, vinha chamando a atenção das volantes que os perseguiam.

Inácio e a irmã Lili, que iniciou a busca pelo irmão, e a mãe, a cangaceira Durvinha, após o fim do segredo do passado no bando de Lampião — Foto: Reprodução (Fernando Lemos)

Depois da morte de Lampião, os pais tiveram de abandonar o cangaço às pressas. A perseguição aos cangaceiros remanescentes era intensa. Na fuga, Moreno e Durvinha cruzaram a pé por 60 dias o interior do Nordeste até Minas Gerais, onde passaram a residir escondidos. Durvinha ainda levou uma picada de cobra no caminho e quase morreu.

— Moreno, cujo nome verdadeiro era Antônio Ignácio da Silva, passou a se chamar José Antônio Souto, impossibilitando dessa forma ser descoberto pela Justiça e por antigos rivais. Durvalina adotou o nome de Jovina — conta Geraldo.

Durvinha, mãe de Inácio Oliveira, num filme de Benjamin Abrahão Calil Botto proibido no Estado Novo — Foto: Reprodução

Em 2005, aos 67 anos, Inácio estava sem esperanças de ter notícia dos pais. Mas a curiosidade da irmã mais velha Neli “Lili” Maria da Conceição daria fim ao segredo. Pressionada, Durvinha contou a ela que deixara um filho com um padre em Tacaratu antes de se mudar para Minas. O menino nascera debaixo de uma quixabeira, árvore espinhosa típica da caatinga, possivelmente em território alagoano (embora tenha sido registrado em Pernambuco). Neli ligou para a pequena cidade e deixou o contato para o suposto irmão retornar. Inácio, que morava no Rio, ligou de volta:

— “Como é o nome da sua mãe?” Neli respondeu: “Jovina Maria da Conceição”. Aquilo foi um balde de água gelada, porque eu sabia que o nome da minha mãe era Durvalina — relata Inácio, lembrando a frustração.

Mesmo assim, o PM reformado resolveu esticar a conversa e pedir para falar com a tal Jovina. Ele se emociona ao recordar.

— A senhora tinha um apelido? Era chamada de Durvinha? A senhora era do arrasta-pé? — perguntou Inácio, citando detalhes que só a mãe biológica poderia saber.

— Como você sabe disso? — respondeu Durvinha, dando a entender que sabia do que se tratava.

— Puta que pariu! Achei minha mãe — concluiu Inácio, vibrando com a realização de um sonho que acalentou por toda a vida.

A ansiedade com a descoberta foi tão grande que Inácio viajou imediatamente do Rio para Belo Horizonte. Não queria perder tempo para encontrar a mãe, o pai e seus cinco irmãos que nem sequer sabiam da história do cangaço. Dois dias depois, ele chegou à casa da nova família, saudado com fogos e festa. Conforme combinado previamente, abraçou ao mesmo tempo o pai, a mãe e a irmã mais velha. Foi a melhor solução para o impasse: todos queriam abraçá-lo primeiro.




Rei do cangaço chefiou bando por quase duas décadas até ser degolado

Diante do passado

Só a partir daí Inácio saberia detalhes da vida dos pais no bando do rei do cangaço.

— Meu pai foi chefe de grupo do bando. Era como um quartel. Tinha um comando geral que era do Lampião. E eles espalhavam a companhia para um lado e para o outro. Senão a polícia atacava e matava todo mundo — explica.

Moreno era reservado e pouco comentava sobre os tempos do cangaço.

— Meu pai precisava confiar muito na pessoa para falar alguma coisa. Ele contava as bravuras. Um dia, ele me disse: “Meu filho, tenho certeza que matei 22 pessoas. Só que foram mais. Só não contabilizei porque tão fui lá conferir” — relata.

Durvinha se destacou no período do cangaço. Inicialmente, foi casada com Virgínio Fortunato da Silva Neto, o Moderno, morto em ação. Logo depois, ela se relacionou com outro integrante do bando, com o qual viveria o resto da vida. É ela que aparece num filme do caixeiro viajante sírio-libanês Benjamin Abrahão Calil Botto. Ela abre um sorriso e aponta a arma para a câmera. O filme que retrata em 14 minutos Lampião e seu bando no Sertão, entre 1935 e 1936, chegou a ser proibido na ditadura do Estado Novo. No entanto, os rolos empoeirados da película foram redescobertos em arquivo público em 1955.

Ao contrário dos pais biológicos, Inácio seguiu o caminho da lei; entrou para a Polícia Militar do Rio — Foto: Reprodução / Fernando Lemos

Visão tolerante

Apesar de ter conhecido a mãe com idade muito avançada, Inácio guarda boas recordações da curta relação em visitas regulares ao longo de três anos.

— A minha mãe era uma doçura. Me colocava no colo e ficava fazendo carinho na minha cabeça — recorda o PM reformado. Me sinto feliz. Conheci meu pai, minha mãe. Foram casados de fato e de direito — conta ele, que se abatia ao ler a expressão “pai desconhecido” em sua certidão de nascimento.

O reencontro com o filho possibilitou que os ex-cangaceiros voltassem a ter contato com os parentes deixados para trás, com a fuga da polícia e posterior troca de identidade. Após quase 70 anos, a família toda voltou a se reunir no Nordeste. Durvinha morreu aos 92 anos em 2008, e o marido, aos 100, em 2010.

Apesar de ter ficado ao lado da lei por ser PM, Inácio tem hoje uma visão mais tolerante sobre o cangaço.

Depois de 67 anos após ser deixado com um padre, Inácio reencontra o pai, Moreno, chefe de grupo no bando de Lampião — Foto: Reprodução (Fernando Lemos)

— Várias pessoas já me perguntaram como classifico o cangaço. Se falarem que os cangaceiros são ladrões, é verdade: roubavam. Eles matavam e furtavam, mas com uma diferença. Eles roubavam o cabrito, o boi e outros animais para se alimentar e não para comprar drogas. O furto deles era para dar a quem tinha menos. Se o fazendeiro tinha muitas posses e era ruim, ele pedia dinheiro para dar aos mais pobres. Meu pai e minha mãe diziam que Lampião não era ruim. Era mau só quando faziam algo contra ele — comenta Inácio.

Para o pesquisador Geraldo Júnior, Lampião é um mito que merece muitas reflexões sobre a História do Sertão. Mesmo 86 anos após sua morte, o rei do cangaço é motivo de debate acalorado entre admiradores e críticos.

— Há os que definem os atos de Lampião como heroicos, possivelmente por desconhecer a sua verdadeira biografia, enquanto outros o enxergam apenas como um bandido frio, cruel e sanguinário. Herói ou bandido? Uma resposta que jamais será unânime, mas que continuará ecoando através do tempo e atraindo curiosos e estudiosos  — opina.
    Por Elcio Braga — Rio de Janeiro - O GLOBO

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