O tenente-coronel Mauro Cid (à esq.) e o ex-comandante do Exército e general da reserva Marco Antônio Freire Gomes —Fotos de Pedro França/Agência Senado e Cristiano Mariz/O Globo
Na representação que embasou a operação Tempus Veritatis, deflagrada no último dia 8 com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), a PF cita cinco áudios encaminhados pelo então ajudante de ordens de Bolsonaro a um contato que, pela “análise dos dados e a contextualização” a partir das demais evidências colhidas pelos policiais, “indicam que as mensagens tinham como destinatário o então comandante do Exército, general Freire Gomes”.
Entre os dias 8 de novembro e 9 de dezembro de 2022, Cid, que é oficial da ativa, relatou ao general detalhes das tratativas golpistas discutidas a portas fechadas, entre eles a decisão de Bolsonaro de “enxugar” a minuta do golpe e manter apenas a determinação da prisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do STF, Alexandre de Moraes, e excluir outras autoridades da lista.
“Hoje o que ele [Bolsonaro] fez de manhã? Ele enxugou o decreto, né? Aqueles considerandos [sic] que o senhor viu e enxugou o decreto, fez um decreto muito mais, é… Resumido, não é?”, disse Mauro Cid no áudio enviado ao celular que a PF diz ser de Freire Gomes às 12h33m do dia 9 de dezembro.
Dois dias antes, de acordo com o que a PF constatou nos registros da portaria do Palácio da Alvorada, estiveram lá o chefe do Exército e seu contraparte da Marinha, Almir Garnier Santos, além do ministro da Defesa, o general da reserva e ex-comandante do Exército Paulo Sérgio Nogueira.
Em sua delação, o tenente-coronel Mauro Cid, que era ajudante de ordens do ex-presidente, afirmou que nesse dia Bolsonaro apresentou uma minuta de um decreto que previa a prisão de Moraes – além da convocação de novas eleições, e, por consequência, da anulação da vitória de Lula – aos comandantes com o objetivo de sondar os ânimos quanto ao plano que estava em curso.
Dois minutos depois da primeira mensagem, Cid ainda enviou outro áudio que, para os investigadores, ratifica “[a relação das] pessoas que participaram da reunião no dia 07/12/2022 e a existência do decreto que foi alterado e limitado" por Bolsonaro.
“Ele mexeu naquele decreto, né. Ele reduziu bastante [a minuta] e fez algo muito mais direto, objetivo, curto e limitado”, afirma a transcrição.
Na delação, ele explicou que nessa ocasião o ex-presidente mandou tirar da minuta a ordem de prisão do ministro do Supremo Gilmar Mendes e do presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), deixando apenas a ordem para prender Alexandre de Moraes.
Neste mesmo trecho, o tenente-coronel dá a entender que Bolsonaro estava ciente das potenciais implicações de um fracasso da aventura golpista.
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“Mas ele [Bolsonaro] ainda tá naquela linha do que foi discutido, [do] que foi conversado com os comandantes, né, e com o ministro da Defesa”, afirmou Cid. “Ele entende o que pode acontecer”.
Embora traga a transcrição dos áudios de Cid, mas não especifica se Freire Gomes respondeu as mensagens enviadas pelo aplicativo de mensagens do Exército, o UNA.
Fontes da PF já anteciparam que vão chamar o ex-comandante a depor para esclarecer o teor das conversas com Bolsonaro. Até agora, de acordo com a própria representação ao ministro Alexandre de Moraes, não está descartada a hipótese de omissão dos comandantes diante de uma tentativa de golpe.
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O que o material revela é que Mauro Cid não se preocupou sequer em disfarçar nos áudios o que estava sendo discutido.
Uma possível explicação para essa falta de cerimônia é o fato de que Cid e Freire Gomes já vinham conversando sobre a mobilização dos bolsonaristas desde novembro.
Na primeira comunicação documentada pela PF, no dia 8 de novembro, Cid procurou o chefe do Exército para relatar que Bolsonaro teria desistido de “qualquer ação mais contundente” no questionamento às urnas.
Mais tarde, no dia 11 de novembro, o ajudante de ordens de Bolsonaro comemorou a repercussão de uma carta conjunta dos comandantes das Forças Armadas que defendiam a “legitimidade” das manifestações que passaram a ocorrer nas portas dos quartéis depois da vitória de Lula nas eleições.
O documento, que Freire Gomes também subscreveu, dizia que as instituições reafirmavam “seu compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro” no contexto dos atos bolsonaristas e taxava como “condenáveis” eventuais restrições às manifestações diante de instalações militares por decisão do Judiciário ou outros agentes públicos.
“Então, com a carta das Forças Armadas, o pessoal elogiou muito”, afirma Cid num áudio enviado em 11 de novembro e transcrito na representação da PF.
“Eles estão se sentindo seguro [sic] para dar um passo à frente. Então, os organizadores dos movimentos vão canalizar todos os movimentos previstos [inaudível] o dia 15 como ápice, a partir de agora. Tá pro Congresso, STF, Praça dos Três Poderes basicamente”.
O ajudante de ordens prossegue citando o medo de bolsonaristas de serem presos por ordem de Alexandre de Moraes.
“E o que eles entenderam dessa carta? Que, obviamente, os movimentos vão ser convocados de forma pacífica, e eles estão sentindo o respaldo das Forças Armadas, porque agora esses movimentos, e é o que os caras queriam, vão botar o nome deles no circuito para aparecer [sic] lideranças que puxam o movimento para o STF e o Congresso”.
A mobilização de fato aconteceu no feriado da Proclamação da República e reuniu milhares de bolsonaristas em diversas capitais brasileiras que pediam por uma intervenção militar para manter Bolsonaro no poder.
Para a PF, o áudio em questão demonstra a existência de uma interlocução entre as lideranças dos atos golpistas com integrantes do governo Bolsonaro, com “alinhamento de condutas” e participação de militares para respaldar e intensificar “os movimentos de ataque às instituições”.
“Percebe-se que no dia 11 de novembro de 2022 já havia a intenção de que as manifestações fossem direcionadas fisicamente contra o STF e o Congresso Nacional, fato que efetivamente ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023”, afirmam os investigadores da PF na representação ao Supremo, em referência à invasão das sedes dos Três Poderes por bolsonaristas golpistas.
A interação entre Cid e Freire Gomes continua no dia seguinte aos atos do feriado de 15 de novembro – dessa vez, para o ajudante de ordens de Bolsonaro manifestar preocupação com o bloqueio de 43 contas de pessoas físicas e jurídicas ligadas ao agronegócio, determinado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes por envolvimento no bloqueio de rodovias e acampamentos nos quartéis em defesa de uma intervenção militar.
“General! Os líderes, né? Os empresários do agro que estão financiando, colocando carro de som em Brasília aqui tiveram os bens bloqueados e foram chamados para depor”, relatou Cid na ocasião.
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Cid chega a contar a Freire Gomes até sobre a reunião entre Bolsonaro e o general Estevam Theophilo, então comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter) que, como contamos no blog, colocou suas tropas à disposição para o golpe bolsonarista.
Nos áudios, porém, Cid conta uma história diferente, em uma aparente tentativa de não melindrar o comandante pelo fato de o presidente da República estar falando diretamente com um subordinado hierárquico.
“Acho que a ideia de falar com o general Theophilo é conversar. Como ele [Bolsonaro], né, tá muito preso no Alvorada então é uma maneira dele desabafar e falar um pouco [sobre] o que ele tá pensando e ouvir, né”, disse Cid.
“Não que [Theophilo] possa dar uma solução, mas que, né… E eu acho que se não botar pilha, digamos assim, se não botar lenha na fogueira, ele mantém aquela linha que tava sendo, que tá sendo tomada inicialmente”.
Freire Gomes até agora tem se mantido em silêncio, apesar dos constantes recados e pedidos para que esclareça os diálogos com Cid e as conversas fechadas com Bolsonaro. Fontes do Exército afirmam que ele não pretende se manifestar publicamente por enquanto.
Por Johanns Eller - O Globo
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