Chegada do primeiro lote das vacinas em Santa Catarina — Foto: Arquivo/Ricardo Wolffenbüttel/ Secom
O Brasil queimou R$ 1,4 bilhão em vacinas contra a Covid-19 desde 2021. O valor é referente a mais de 39 milhões de doses que venceram sem serem utilizadas e precisaram ser incineradas, de acordo com dados do governo aos quais o g1 teve acesso (veja gráfico abaixo).
O fim da validade e a necessidade de descartar quase 40 milhões de doses foram revelados pela "Folha de S. Paulo" em março. Agora, a incineração de insumos médicos é investigada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O órgão apura se houve improbidade administrativa (quando agentes públicos causam prejuízos aos cofres públicos).
O desperdício, na visão de especialistas (leia mais abaixo), é consequência da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que demorou para comprar e distribuir as doses, enquanto o próprio Bolsonaro empreendia uma cruzada contra as vacinas, se recusando a se imunizar e disseminando desinformação, como fez quando associou a vacina da Covid com a Aids. A CPI da Covid, que investigou as condutas do governo federal ao longo da pandemia terminou com o pedido de indiciamento dele por 9 crimes.
O total de vacinas incineradas representa quase 5% do total comprado pelo país. Segundo especialistas em logística na saúde, é comum o descarte de medicamentos vencidos, mas o índice está acima do considerado aceitável de até 3%.
👉 As primeiras vacinas foram queimadas em 2021, mesmo ano em que começou a imunização no país, e aumentaram em número em 2022, durante o governo Bolsonaro. Neste ano, já no governo Lula, a quantidade foi maior porque mais lotes de vacina venceram sem que houvesse tempo para dar outro destino aos insumos, chegando ao montante bilionário.
🚨 Para especialistas, o grande número de vacinas vencidas se explica por problemas de logística, pela falta de campanha de imunização e por forte propaganda antivacina ao longo da pandemia de Covid.
📈 No infográfico abaixo, veja a quantidade de doses queimadas em cada ano e o gasto em valores - já atualizados com a inflação do período para números de hoje.
Procurada, a assessoria de Bolsonaro disse que o ex-presidente não tinha gerência sobre o descarte de vacinas e que havia dado "autonomia plena para os ministros".
O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazzuelo, que ficou à frente da pasta até março de 2021, não se manifestou.
Seu sucessor, o ex-ministro Marcelo Queiroga, respondeu ao g1 que as compras foram definidas pelas áreas técnicas da pasta e que não tinha responsabilidade sobre o descarte.
A atual gestão do Ministério da Saúde afirma que "herdou um estoque de mais de 157,9 milhões de itens de saúde a vencer até o mês de julho equival
💉 Ao todo, o Brasil adquiriu 823 milhões de doses contra a Covid entre 2020 e 2023, segundo o Ministério da Saúde.
Após a compra, as vacinas eram distribuídas pelo governoente a R$ 1,2 bilhão" e que criou um comitê para monitorar e mitigar perdas. (Leia os posicionamentos ao final.)
Problemas na logística e na aplicação
federal aos estados, que as enviavam aos municípios.
Apesar da expertise do Sistema Único de Saúde (SUS) com o Programa Nacional de Imunização (PNI), que é referência internacional, houve uma série de problemas na entrega e na aplicação das vacinas ao longo da pandemia. Por exemplo:
* No início da imunização, o ministério errou e trocou a quantidade de doses enviadas ao Amazonas e ao Amapá.
* No interior paulista, por um erro de logística, idosos receberam vacinas de fabricantes diferentes, o que não era recomendado na época.* A capital paulista precisou interromper a vacinação por causa de atraso na entrega pelo governo federal.
No fim de 2022, não havia orientação do ministério sobre a aplicação de doses complementares.
Logo no início deste ano, assim que foi empossado, o novo governo se deparou com a falta de vacina contra Covid para crianças.
Por que é aceitável queimar até 3% de insumos?
A logística de compra de insumos exige um cálculo que se baseia na projeção de demanda futura.
👉 Ou seja, no caso das vacinas, é observado o volume de pessoas que precisam do imunizante, o prazo de validade dos lotes e o prazo de entrega do fabricante para que sejam compradas doses em número suficiente até a remessa seguinte.
No entanto, é levada em consideração nesse cálculo a chamada "quebra de estoque", que é a possibilidade de uma margem de perda diante do volume comprado.
Isso porque, como se trata de uma projeção, o cenário pode não se concretizar por razões como problemas na distribuição.
Segundo Gonzalo Vecina, professor na Faculdade de Medicina da USP e especialista em logística de saúde, o limite considerado aceitável para a perda de insumos é de até 3%. No caso das vacinas de Covid, foram queimados 5% do estoque comprado.
Falta de campanha de imunização
Para Vecina, que foi presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a quantidade de vacinas incineradas evidencia um "problema de gestão gravíssimo no Ministério da Saúde" durante o governo Bolsonaro.
Isso é um desperdício. Em cálculos de administração de estoque, você aceita quebra de até 3%, isso é o máximo. Me assusta ver a quantidade de produtos bastante caros que acabaram sendo jogados na lata do lixo.
— Gonzalo Vecina, médico sanitarista especialista em logística de saúde
Na avaliação de Cláudio Maierovitch, que também presidiu a Anvisa e foi diretor de vigilância de doenças transmissíveis no Ministério da Saúde, a questão é que o cálculo de logística não podia prever a campanha antivacina do próprio governo federal.
De um lado, embora houvesse compra e distribuição de vacina, de outro, havia uma cruzada do então presidente Bolsonaro contra as vacinas, se recusando a se imunizar e disseminando desinformação sobre a vacina. A CPI da Covid, que investigou as condutas do governo federal ao longo da pandemia terminou com o pedido de indiciamento dele por 9 crimes.
“Houve uma atitude clara do comando do governo de questionar o valor da vacina, de ser contra a vacina, insinuar que eram problemáticas e, de alguma forma, perigosas. Além disso, não houve investimento em campanhas e era até difícil saber quando estava na hora de vacinar quem. As informações eram desencontradas, não havia divulgação”, afirma Maierovitch.
Para o deputado estadual Carlos Lula, que durante a pandemia era secretário de Saúde do estado do Maranhão e chefiou o Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), os erros de logística aconteceram na fase mais crítica, mas não foi isso que impactou com mais força esse desperdício que houve.
"Aconteceram [os problemas], sim, lógico que aconteceram, sobretudo, naquela confusão inicial”, pondera, acrescentando que enfrentou também resistência dos municípios em vacinar.
Ele relembra, porém, que os secretários à época enfrentaram dificuldades porque "nunca sentiram o governo federal como aliado". "Foi muito difícil naquele momento pautar a vacinação dessa forma, porque era como se estivéssemos sempre remando contra a maré", diz.
Investigação da PGR
A investigação que corre na PGR para apurar a incineração de vacinas foi aberta em março deste ano.
Até o momento, foram tomados depoimentos de servidores, mas não se chegou ainda na fase de apontar responsáveis. Ao fim da investigação, a PGR poderá propor ação civil pública ou um termo de ajustamento de conduta (TAC).
Segundo a procuradoria, são apurados "possíveis atos de improbidade administrativa, com dano ao patrimônio, pelo descarte de medicações adquiridas pelo Ministério da Saúde que perderam sua validade nos últimos cinco anos"
5 mil decretos sob análise
O professor de direito sanitário da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Aith é coautor de um estudo que analisou cerca de 5 mil decretos do governo Bolsonaro ligados ao combate da pandemia. O estudo foi tema do podcast O Assunto. (Ouça abaixo)
Para ele, o desperdício de dinheiro público com a queima das vacinas é "consequência natural da política que estava sendo adotada".
Na avaliação dele, é possível enquadrar a queima de vacinas por perda de validade como crime contra o patrimônio público porque os gestores "promoveram gastos inúteis e deliberadamente não deixaram que esses recursos chegassem ao destino de política pública".
Foi um interesse deliberado do governo federal em não promover a vacinação e, por isso, essas vacinas ficaram em estoque. Comprou para dizer que fez a parte dele, mas não se preocupou em distribuir e capacitar os estados e municípios para aplicar, de fato, no braço das pessoas.
— Fernando Aith, professor de direito sanitário da USP
Ele entende que, nesse caso, fica configurada improbidade administrativa, pois houve dolo dos agentes públicos, e crime contra a saúde pública.
"No final das contas, houve uma ação deliberada para evitar que as pessoas tivessem acesso a produtos necessários para a proteção da própria vida", diz.
O que diz o governo Bolsonaro
➡️ Assessor de Bolsonaro, o ex-secretário especial de Comunicação social Fabio Wajngarten afirmou ao g1 que o ex-presidente não tinha "nenhuma ingerência [interferência] no tema" ao ser questionado sobre a queima de vacinas de Covid. "Liberdade e autonomia plena para os ministros", respondeu.
➡️ Já o ex-ministro Marcelo Queiroga disse que o Ministério da Saúde "tomou todas as providências necessárias para conter a crise sanitária" e que as estimativas de compra de vacina "foram feitas pela área técnica" e que "não compete ao ministro da Saúde fazer essas estimativas".
Sobre a investigação da PGR, o ex-ministro afirmou que "todos devem responder pelos atos que praticam na administração pública". "Seguramente, as instâncias de controle estão apurando as responsabilidades devidas. Inclusive o que houve em estados e municípios", disse.
➡️ Procurado por meio de sua assessoria, o ex-ministro Eduardo Pazuello não se pronunciou.
O que diz a atual gestão do Ministério da Saúde
➡️ O g1 também pediu uma manifestação para a atual gestão do Ministério da Saúde, que enviou o posicionamento a seguir:
"A nova gestão do Ministério da Saúde herdou um estoque de mais de 157,9 milhões de itens de saúde a vencer até o mês de julho equivalente a R$ 1,2 bilhão.
Após uma série de ações estratégicas com o compromisso de minimizar as perdas de estoques de insumos, o Ministério da Saúde evitou o desperdício de mais de R$ 251,2 milhões em vacinas. O valor equivale a mais de 12,3 milhões de doses.
Para mais transparência da gestão da pasta, logo no início do ano foi instituído um comitê permanente para monitorar a situação e adotar medidas para mitigar perdas.
Também foi pactuado, junto aos estados e municípios, prioridade logística aos itens de menor prazo de validade, assim como articulação via cooperação internacional para doações humanitárias.
No caso das vacinas, somam-se a essas ações, a retomada das campanhas de vacinação e adoção de estratégias para ampliar cobertura vacinal no país.
Também foi antecipada a campanha de multivacinação, voltada para crianças e adolescentes."
Por Poliana Casemiro, Arthur Stabile, g1
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