Quem pode saber se o sopro vital do homem sobe para o alto, e o do animal desce para baixo da terra? Questiona-se o autor do Eclesiastes, o rolo mais misterioso da Bíblia. Na antiguidade, os animais contribuíam para o progresso da atividade humana: a partir da era moderna, porém, passamos a amá-los. Mas nosso relacionamento com eles é ambíguo e difícil de definir. Vamos pensar na pesquisa com animais: é certo testar vacinas em animais para a nossa saúde. Há poucos dias na Itália terminou uma longa batalha entre a Liga antivivissecção e os pesquisadores das universidades de Torino e Parma sobre a experimentação de macacos: após dois anos, os juízes disseram que é possível infligir lesões cerebrais mínimas em macacos para permitir pesquisas sobre cegueira em humanos. Ao mesmo tempo, as prateleiras dos nossos supermercados estão cheias produtos cruelty-free.
A entrevista é de Marco Grieco, publicada por Wired, 06-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos últimos anos, nossa relação com os animais mudou. Os números o confirmam: segundo o Enpa, em 2020 houve um boom na adoção de cães e gatos para um total de 17.600 animais domésticos em todo o país: um aumento de 15% em relação a 2019. A mudança de hábitos também diz respeito à mesa porque a Itália, o quarto país produtor de carne bovina, registrou no ano passado uma queda na produção tal que, na última década, sua produção caiu em um terço (dados OICB, Sole 24 ore).
A mentalidade cultural e social também está mudando o nosso imaginário. Durante as fases de boom econômico, Os pássaros de Alfred Hitchcock (1963) ou Tubarão de Steven Spielberg (1975) levaram às telas uma relação conflituosa entre o homem e o reino animal: fiel a uma tradição infinita de fábulas, na luta com os animais o homem sempre viu uma parte de si com o qual se reconciliar, com resultados sempre negativos para o animal. Don’t F**k With Cats: Uma Caçada Online, a popular série 2019 da Netflix, inverte a perspectiva: de dominador socialmente aceito, o homem se transforma em assassino condenado pelo público social. A pandemia de Covid-19 também afetou a percepção nas fases iniciais: a transmissão do coronavírus Sars-Cov2 por zoonose destacou os comportamentos humanos em colocar os animais em condições desumanas, como em fazendas intensivas ou nos wet market presentes na Ásia. Não é por acaso que até mesmo algumas cidades da China, onde não existe lei de proteção para animais de estimação, publicaram uma portaria para proibir o consumo de carne de cães e gatos.
Por isso, perguntar-se se os animais têm alma reflete a complexidade da nossa sociedade, mas mostra que também a Igreja Católica lê os sinais dos tempos. No primeiro número do ano da Vogue Italia, dedicado aos animais, o padre Antonio Spadaro, colaborador próximo do Papa Francisco, destacou a ligação entre o homem e o ser vivo diante das ameaças ecológicas: “O grito dos animais nos deve despertar porque - escreve o jesuíta, citando o papa - o desaparecimento de uma espécie animal é semelhante ao desaparecimento de uma cultura”. Depois acrescenta: “O pecado contra os animais é o rompimento de uma conexão radical entre os seres vivos, porque a criação não tem fronteiras: é de todos e para todos”. O uso de palavras como "pecado", próprias da teologia moral, evidencia o grande passo à frente que o catolicismo está dando no campo da ética animal.
Nem sempre foi assim. Os primeiros a se interessar pela relação entre seres humanos e animais foram os filósofos, que partiram do ponto de vista dos sentidos: se o animal sofre, deve-se admitir a possibilidade de que o mal infligido seja evitado. Este ponto de vista denominado patocêntrico - de pathos, dor em grego - pressupõe que a criatura tenha uma dignidade própria que, como tal, deve ser preservada da experiência do sofrimento infligido. Este é o ponto de partida de um dos mais conceituados filósofos do antiespecismo, o italiano Leonardo Caffo, para quem uma verdadeira revolução da humanidade começa com o não abuso dos animais, tanto na mesa quanto na experimentação científica. O desafio radical aos nossos estilos de vida, portanto, despertou o interesse dos primeiros teólogos: se muda a nossa relação com os animais, não deveria mudar também a nossa consciência?
Quando os primeiros teólogos se interessaram pelo assunto, não foram levados em grande consideração. Por exemplo, John Berkman, um professor da Catholic University of America, após publicar seu ensaio, Prophetically pro-life: John Paul II’s Gospel of Life and Evangelical Concern for Animals, foi convidado pela faculdade de teologia a parar de tratar do assunto. Em 2007, a teóloga Clelia Deane-Drummond, autora de Animal Ethics: Where Do We Go From Here ficou pasma com a ignorância de seus colegas teólogos, mas também com uma certa presunção dos especialistas em considerar o tema superficial.
Mas 2014 é o ano central da atenção católica para os animais, tanto que muitos - mesmo sem admissões explícitas sobre o assunto - acreditam que Laudato si' representa um ponto de partida no tema dos direitos dos animais, pelo menos desde o tempo da Libertação animal de Peter Singer, que aborda o tema da luta contra o especismo. Naquele mesmo ano, a imprensa noticiava que o Papa Francisco havia falado de um paraíso para os animais a uma criança que estava chorando pela morte de seu cachorro: “Um dia veremos nossos animais novamente na eternidade de Cristo. O céu está aberto a todas as criaturas” escrevia o Il Corriere della Sera em 27 de novembro de 2014, reproduzindo as palavras do Papa Francisco durante a audiência: na realidade, o Papa havia citado seu predecessor, Paulo VI. Questionada pelo New York Times, Christine Gutleben, chefe da Humane Society USA - uma das maiores associações de defesa animal nos Estados Unidos - disse: "Se o papa queria dizer que todos os animais vão para o céu, então a implicação é que os animais têm alma. E se isso for verdade, deveríamos considerar seriamente como os tratamos”. Pouco depois lhe fez eco Sarah Withrow King, diretora do grupo de ativista anti-massacre Christian Outreach and Engagement, imaginando que declarações desse tipo "poderiam influenciar os hábitos alimentares, afastando os católicos do consumo de carne". Mas a questão não é tão simples. O próprio pontífice em 2014, durante a missa no Santa Marta, havia criticado os “matrimônios estéreis”, ou seja, aqueles em que os dois cônjuges deliberadamente optam por não querer filhos: “Talvez seja mais cômodo ter um cachorro, dois gatos e amor vai para os dois gatos e o cachorrinho. Isso é verdade ou não? Ele havia perguntado. E o mesmo tom havia retornado durante uma audiência de jubileu em 2016, criticando aqueles que se derretem de amor pelos animais e se esquecem dos outros seres humanos: “Quantas pessoas se apegam a cães e gatos e deixam a vizinha sozinha e passando fome. Não, por favor, não!” ele exclamou.
A ambivalência nas palavras do Papa reflete a mesma ambivalência que surge quando, falando da alma dos animais, nos deparamos com duas tendências opostas: aqueles que consideram o animal parte da criação, mas funcional para o desenvolvimento do ser humano, e aqueles que o humanizam. Um monge do sul do Tirol, Padre Martin Lintner, tenta esclarecer o assunto. Sua contribuição é das mais interessantes, porque se trata de uma tentativa de responder a questões sobre as quais a perspectiva cristã ficou para trás. Em seu livro, Etica animale. Una perspettiva cristiana, (Queriniana 2020), Lintner não dá respostas definitivas, mas estimula novas questões.
Eis a entrevista.
Padre Lintner, por que a ética animal tem uma implicação moral?
As razões são várias. Em primeiro lugar, são as condições nas fazendas e matadouros que exigem uma reflexão ética sobre como tratamos os animais. Gostaria de lembrar que 360 milhões de porcos, ovelhas, cabras e vacas são abatidos todos os anos na Europa para a produção de carne, além de dois bilhões de aves. Mais de 300 milhões de pintos recém-nascidos machos são mortos anualmente na avicultura de postura. Ainda existem fazendas de peles na Europa com milhões de animais. Ultimamente, milhões de visons foram mortos devido a infecções com o Coronavírus. Gostaria também de lembrar os números relativos ao transporte de animais. Não existem dados oficiais, mas estima-se que cerca de 3,8 milhões de animais são transportados para os países da União Europeia todos os dias, o que equivale a cerca de 1,4 bilhões de animais por ano: um estudo recente do The Guardian concluiu que a UE é o maior exportador de animais vivos no mundo com cerca de 80% do transporte internacional de animais vivos no mundo. Sabemos que muitos animais, especialmente ovelhas e gado, também são transportados para países não pertencentes à UE, como o Norte de África, Médio Oriente e Ásia Central. Além disso, nessas modalidades de transporte, muitas vezes faltam comparações quanto ao cumprimento da legislação da UE relativa à proteção dos animais.
Quanto ao interesse dos teólogos pelo assunto, o senhor fala de um "buraco negro". Por quê?
Refiro-me ao fato de que, nos livros de teologia da criação e nos tratados de ética teológica, a questão da relação homem-animal e as implicações éticas não se encontram ou são insuficientes. Certamente sobre tal lacuna influenciou a doutrina tradicional sobre os animais como seres vivos não providos de razão aos quais uma alma imortal não era reconhecida. Do ponto de vista filosófico, argumenta-se que os animais, não estando aptos a agir moralmente, não fazem parte da 'comunidade moral' e que, portanto, os deveres morais dos homens para com os animais seriam apenas indiretos ou de segundo grau. Na época moderna, o dualismo cartesiano que distinguia res cogitans e res extensa, ou seja, entre seres capazes de raciocinar de um lado e realidades físicas do outro, resultou em uma visão mecanicista dos animais. A capacidade de sofrer e sentir emoções não era vista como moralmente relevante. Hoje encontramos uma sensibilidade crescente a esses aspectos.
E hoje, porém, o que mudou na teologia?
No plano teológico, estamos nos perguntando por que, na tradição cristã, quase nos esquecemos dos animais. São raros os personagens que representam uma exceção como São Francisco de Assis ou São Filipe Neri - de quem costuma se falar que, por causa de seu amor pelos animais, não comia carne. Devemos também redescobrir os fundamentos bíblicos segundo os quais a proximidade entre o homem e os animais é maior do que as diferenças. Na Bíblia, encontramos muitas normas que exigem um comportamento adequado para com os animais: no Gênesis, após o dilúvio, Deus estendeu sua aliança não apenas a Noé, mas também a todos os animais. De acordo com a tradição católica, além disso, o evento salvífico de Cristo inclui toda a criação, incluindo os animais. Parece-me que pensamos muito pouco sobre isso até agora. Certamente devemos refletir também sobre o que distingue a espécie humana das espécies animais. Considero problemáticas as abordagens filosóficas chamadas “especistas”. Por outro lado, porém, devemos também superar uma forma de antropocentrismo que reduz os animais à sua função para nós, humanos, e não reconhece que eles têm um valor próprio que deve ser reconhecido e respeitado de forma independente.
Podemos, portanto, fazer escolhas éticas em nossa vida cotidiana?
Claro. A partir do momento em que pensamos em nós mesmos como animais, devemos nos perguntar criticamente como os tratamos e se respeitamos suas necessidades. Ao mesmo tempo, devemos ter o cuidado de não ‘humanizá-los’, sem projetar neles expectativas às quais eles não podem responder. Além disso, a grande maioria de nós consome produtos de fazendas de criação: carne, leite, queijo, mas também artigos de higiene ou outros em que são utilizados produtos de origem animal. Na minha opinião, deveríamos nos perguntar de que tipo de fazenda vêm esses produtos. Em muitos casos é possível escolher produtos veganos sem problemas, em outros temos que decidir por produtos cuja origem seja apresentada de forma transparente. Além da questão da ética animal, o consumo de produtos de criação também possui um valor ambiental. Sabemos que a agricultura industrializada e as criações em massa desempenham um papel significativo nas mudanças climáticas. Também desse ponto de vista, uma mudança sistêmica na agricultura é necessária com urgência. A redução do consumo de carne e a atenção para que sua origem seja de uma agricultura ecologicamente sustentável é, por exemplo, uma escolha que cada um de nós pode fazer em nome do respeito ao planeta e a toda a humanidade.
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