Uma das funções mais importantes de ajudantes próximos a reis e rainhas, ditadores e presidentes é ter a liberdade de poder avisar que "vai dar merda". Ao pé do ouvido, aconselham, ao longo da História, que determinadas atitudes equivocadas terão consequências imprevisíveis ou nefastas para os chefes.
Para os líderes inteligentes, é uma espécie de consciência externa muito útil considerando a quantidade de puxa-sacos que apenas dizem amém aos que os rodeiam.
Foi, portanto, louvável o esforço do faz-tudo de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, que tentou alertar a primeira-dama, Michelle, e suas assessoras do problema que representava ela pagar suas contas com dinheiro vivo. Pior: usar o cartão de crédito de uma amiga, a assessora parlamentar do Senado Rosimary Cordeiro, para esconder seus próprios gastos
Diálogos revelados com base na análise do celular de Cid, apreendida pela Polícia Federal no momento de sua prisão pelo caso da fraude nos registros de vacinação, mostram que ele tentou com jeitinho o "vai dar merda". As transcrições estão em reportagem de Aguirre Talento, no UOL, neste sábado (13).
Em áudio a uma das assessoras da então primeira-dama, Cid é bem claro: "O Ministério Público, quando pegar isso aí, vai fazer a mesma coisa que fez com o Flávio [Bolsonaro], vai dizer que tem uma assessora de um senador aliado do presidente, que está dando rachadinha, tá dando a parte do dinheiro para Michelle". Rachadinha é o apelido engraçadinho de desvio criminoso de salários de servidores públicos.
E de forma premonitória avisou: "E isso sem contar a imprensa, que quando a imprensa cair de pau em cima, vai vender essa narrativa. Pode ser que nunca aconteça? Pode. Mas pode ser que amanhã, um mês, um ano ou quando ele terminar o mandato dele, isso venha à tona"
De acordo com relatório da PF, isso revela uma "dinâmica sobre os depósitos em dinheiro para as contas de terceiros e a orientação de não deixar registros e impossibilidades de transferências".
Não é novidade que Mauro Cid fazia pagamentos na boca do caixa em dinheiro vivo em nome da família Bolsonaro. A imprensa vem denunciando essa situação usada por grupos que querem esconder irregularidades. Os áudios, no entanto, vêm reforçar que tem caroço nesse angu.
Enquanto empresas e sociedade usam e abusam de transferências bancárias e do PIX, não tendo receio de que suas movimentações estejam registradas para a fiscalização, Bolsonaro e família tentavam encobrir os rastros. Os áudios agora revelados reforçam o que parece ser um nojo de PIX por parte da família. Em uma conversa entre assessoras: "Perguntei para ela se ela [Michelle] queria transferir PIX, né? Daí, ela falou: não, vamos fazer agora tudo depósito, que, aí pede pro Vanderlei fazer o depósito, a gente consegue o dinheiro e faz o depósito".
Investigação da Polícia Federal que busca descobrir se despesas pessoais de Jair Bolsonaro e da primeira-dama foram pagas com dinheiro do público sugere que o presidente pode ter atualizado o desvio de salários de servidores de gabinetes em algo mais chique: o uso de dinheiro da Presidência da República.
E que as funções de saque e depósito de Fabrício Queiroz, antigo faz-tudo da família da época em que o presidente era deputado federal, ficaram a cargo de alguém mais graduado, o tenente-coronel Mauro Cid, seu ajudante de ordens.
De acordo com reportagem de Fábio Serapião e Camila Mattoso, da Folha de S.Paulo, de setembro do ano passado, a realização de depósitos fracionados e saques em espécie chamou a atenção da PF, que desconfiava da tentativa de ocultação da procedência do dinheiro
Um dos exemplos citados é o pagamento fracionado a uma tia de Michelle Bolsonaro que cuidava da filha do casal quando a primeira-dama possui compromissos. As informações surgiram de uma quebra anterior de sigilo de Cid, autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. O militar era inicialmente investigado sobre o vazamento de um inquérito sigiloso sobre um ataque hacker ao TSE. Sim, ele está envolvido em várias indícios de falcatruas.
A assessoria da Presidência disse, na época, que as transações não tinham origem em dinheiro público, que o então presidente nunca sacou grana do cartão corporativo e que os saques foram feitos a partir de sua conta por questão de segurança. Mas a melhor parte de toda essa barafunda é a justificativa dada pela assessoria do governo, de que Cid não usava transferência bancária, preferindo sacar e depositar, para que o nome do presidente não aparecesse no extrato de outras pessoas.
O que, como escrevi acima, é exatamente o oposto do que fazem os cidadãos honestos, que veem no registro bancário uma prova de que a origem e o destino do dinheiro que movimentaram estavam dentro da lei.
Vale lembrar que Juliana Dal Piva e Thiago Herdy, do UOL, mostraram em uma investigação de sete meses e milhares de documentos, que 51 imóveis do clã foram adquiridos total ou parcialmente com dinheiro vivo - recursos que podem ter surgido das "rachadinhas", como ficaram conhecidos os desvios de salários dos servidores.
Todos os escândalos financeiros do clã Bolsonaro convergem sempre para este ponto: o uso de dinheiro vivo para tentar ficar abaixo do radar dos mecanismos de controle de transações financeiras, sugerindo que os recursos envolvidos são ilícitos ou que o processo envolve algum tipo de lavagem de dinheiro público.
O que admira é a transposição, praticamente sem adaptação, do comportamento identificado nos gabinetes da família de Jair para o espaço da Presidência da República. Realmente, o Palácio do Planalto foi, durante quatro anos, um puxadinho do condomínio Vivendas da Barra. Com rachadinha, com milícia, com tudo.
Leonardo Sakamoto
Colunista do UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são publicados somente depois de avaliados por moderador. Aguarde publicação. Agradecemos a sua opinião.