quarta-feira, março 15, 2023

Ministério da Saúde deixou vencer 39 milhões de vacinas contra Covid avaliadas em R$ 2 bilhões

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao lado do ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, em cerimônia no Palácio do Planalto em 2022 - Antonio Molina/Folhapress

O Ministério da Saúde perdeu ao menos 38,9 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19, avaliadas em cerca de R$ 2 bilhões.

Desse total, cerca de 2 milhões de unidades foram descartadas e 31 milhões estão encaminhadas para incineração. Os 5,9 milhões restantes ainda serão encaminhados para descarte, de acordo com o Ministério da Saúde.

Em seu site, a pasta afirma que 399 milhões de doses contra a Covid foram aplicadas até hoje no país.

Integrantes da Saúde culpam o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo acúmulo de doses. Afirmam ainda que estudam doar vacinas a outros países como uma das formas de evitar novas perdas.

A pasta diz que 20 milhões vencem em seis meses, sendo que 5 milhões delas já nos próximos três meses.

Estados e municípios ainda costumam rejeitar lotes com validade curta. Justamente pelo risco de o produto vencer.
Atual secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Ethel Maciel disse que, durante a transição de governo, a gestão Bolsonaro nem sequer compartilhou dados sobre os estoques com a equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"A gente pegou um governo com estoque de vacinas vencidas e para vencer, enquanto aquelas que precisávamos não tinham estoque. Não havia nem contrato [encomendando as doses] no caso das vacinas pediátricas e bivalentes", disse.

"Se não fosse o negacionismo, essas doses não estariam nos estoques. Se tivesse acontecido um esforço, como estamos fazendo agora, com campanhas educativas, alinhamento com gestores municipais e estaduais, essas vacinas não teriam vencido", acrescentou a secretária.

Segundo o ministério, cerca de 2 milhões de doses perderam a validade ainda em 2021. São lotes doados pelos Estados Unidos e já foram incinerados.

Outros 9,9 milhões de vacinas expiraram em 2022. A partir de janeiro de 2023, perderam a validade mais 27,1 milhões de imunizantes para a Covid.

Procurado, o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga disse que seus secretários eram os responsáveis pelo controle dos estoques.

"As vacinas foram adquiridas em função da população brasileira, como sabemos, a adesão às vacinas diminuiu depois do controle sanitário da doença em todo o mundo. Pelo que fui informado, a maior parte das vacinas vencidas são da Fiocruz", afirmou Queiroga.

Em nota, a Saúde afirma que "a atual gestão do Ministério da Saúde se deparou [ao assumir o governo] com um cenário de 27,1 milhões de doses de vacinas contra Covid-19 sem tempo hábil para distribuição e uso".

A Folha pediu, via Lei de Acesso à Informação (LAI), dados sobre vacinas perdidas e recebeu a resposta de que 33 milhões de doses já foram descartadas ou enviadas para incineração.

Desse grupo, cerca de 12,4 milhões de imunizantes, avaliados em R$ 415 milhões, perderam a validade até o fim de 2022. O resto, quase 21 milhões de unidades, compradas por R$ 740 milhões, venceram em 2023.

Depois, ao ser questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que há outras 5,9 milhões de doses vencidas, que ainda serão encaminhadas para incineração.

A tabela enviada pelo Ministério da Saúde não detalha se todas as vacinas foram perdidas por causa do fim da validade ou se, por exemplo, algum lote foi reprovado em testes de qualidade. No entanto, a reportagem confirmou com profissionais que atuam na pasta que todas as doses venceram.

Os dados enviados pela pasta também não confirmam o modelo de vacina que perdeu a validade. A partir dos números de lote, é possível verificar que ao há doses da Coronavac e da AstraZeneca/Fiocruz que foram ou serão descartadas.

DOSES CONTRA A COVID-19 VENCIDAS POR ANO:

2021: 1.904.140

2022: 9.922.430


2023 (até 28/2): 27.125.070

Total: 38.951.640

A equipe de Saúde do governo de transição tratou o estoque de vacinas prestes a vencer como uma espécie de herança maldita. No relatório final, o grupo disse que havia "grande quantidade de vacinas com prazo de vencimento muito curto, por falha no planejamento, monitoramento e gerenciamento dos estoques".

Desde 2018, as informações sobre estoques do Ministério da Saúde, inclusive de produtos vencidos, estão sob sigilo. A Folha fez diversos pedidos de acesso durante a gestão Bolsonaro, todos negados.

A equipe de Lula decidiu compartilhar, por enquanto, os estoques perdidos.

A secretária Ethel Maciel diz que a pasta se preocupa com as doses que vencem nos próximos três meses. "As outras têm prazo de um ano, seis meses, e não temos preocupação com elas porque a gente está nesse movimento nacional pela vacinação e várias ações estão sendo pactuadas."

Bolsonaro estimulou a desinformação sobre as vacinas da Covid-19. Ele chegou a ameaçar expor servidores da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que participaram da liberação da aplicação de doses em crianças.

Ao tomar posse, a atual ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse que houve um "período de obscurantismo de negação da ciência" durante a gestão anterior.

Órgãos de controle, além de gestores do SUS, fizeram diversos alertas na gestão Bolsonaro sobre o risco de as vacinas perderem a validade.

Como mostrou a Folha em junho de 2021, documentos de auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) apontavam o risco de a Saúde perder cerca de 28 milhões de doses até agosto daquele ano.

A Saúde já havia deixado vencer um estoque avaliado em R$ 243 milhões de vacinas, além de testes e outros itens, como também revelou a Folha, em 2021. Quase todos os produtos perderam a validade na gestão Bolsonaro.

O TCU confirmou, no começo de março, que cerca de 2 milhões de doses de vacinas da Covid doadas pelos Estados Unidos foram descartadas.

Os ministros do tribunal decidiram aplicar multa de R$ 1 milhão ao general da reserva Ridauto Ribeiro, ex-diretor de logística da Saúde, e a Rosana Leite, ex-secretária extraordinária de enfrentamento à Covid-19, sob o argumento de que faltou planejamento ao aceitar uma doação de doses com validade curta.

Os lotes doados chegaram ao Brasil cerca de um mês antes do fim da vida útil.

Procurado, Ridauto disse que todas as doses recebidas durante sua gestão foram mantidas em perfeitas condições de armazenagem, "não tendo havido qualquer perda de vacinas de Covid por dano ou armazenagem inadequada".

"Quanto à decisão de se adquirir ou receber vacinas (e das quantidades a serem adquiridas), ou a utilização desse material, ou seja, a decisão de enviá-lo ou não aos estados e DF, isso não competia ao órgão que eu dirigia, o Dlog", afirmou ainda. Ele declarou que os "gestores competentes" devem responder pelas compras e pelo período em que as doses ficaram estocadas.

Rosana Leite foi procurada, mas não se manifestou.

O médico José Davi Urbaez Brito, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, lembra que na logística de vacinas há sempre o cálculo de uma perda, mas não nessa magnitude.

Segundo o especialista, o programa de vacinação não será prejudicado, até porque boa parte da população está vacinada. "De maneira alguma estou dizendo que justifica a perda de algo tão valioso. É lamentável. Isso é a tradução fiel de planejamento extremamente ruim num país como o nosso, que é gigantesco."

"Isso denota a falta de uma gestão mais precisa, de uma gestão aplicada em acoplar a compra, a conservação, a programação farmacêutica com a distribuição, no momento em que você tem vários grupos-alvos para a Covid", afirma Brito.

Para Evaldo Stanislau de Araújo, infectologista do Hospital das Clínicas de São Paulo, é um caso de polícia que precisa de apuração devido às implicações administrativas, econômicas, da gestão das vacinas e do dinheiro público desperdiçado, além do cuidado com a saúde da população.

"Está dentro do contexto de um governo que não estimulou a vacinação. Isso se soma ao descaso como um todo. Merece uma apuração policial para que os culpados sejam identificados e passíveis de todo rito legal para uma situação como essa", afirma Araújo.

O especialista aponta para uma falta de liderança técnica no Ministério da Saúde, potencializada pela visão distorcida de quem enxergava vacina como algo que faz mal. "Uma gestão minimamente organizada começa gerindo estoque, ordenação de limpeza, pagamento. Mais lamentável ainda foi a declaração do ex-ministro dizendo que quem geria isso eram os secretários dele."

Por Folha de S. Paulo

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