domingo, fevereiro 06, 2022

Cicatrizes da fome: Acidentes com álcool crescem com crise do gás


O álcool é um líquido inflamável e traiçoeiro. Diferentemente do que ocorre na queima de lenha ou de gás, quando o álcool pega fogo e o combustível está acabando, a chama fica transparente e nem sempre é perceptível.


Sem dinheiro para comprar gás de cozinha, Leiliane Oliveira, 35 anos, contava com uma latinha cheia de álcool para aquecer a comida e alimentar sua família. Em uma quinta-feira, ela arrumou o cabelo quando chegou a sua casa, e foi fazer o jantar para o esposo e a filha usando pela primeira vez o combustível comprado por R$ 3 no posto de gasolina.

O fogareiro improvisado apagou enquanto cozinhava mingau de fubá e frango ao molho. A auxiliar de cozinha pegou a garrafa quente de refrigerante cheia de álcool, abriu a tampa e tentou encher o reservatório.


Esse tipo de acidente tem se tornado cada vez mais frequente no Brasil. De acordo com levantamento feito pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), entre março e novembro de 2020, foram registradas cerca de 700 internações em decorrência de queimaduras causadas em incêndios por álcool. Em alguns estados, como Pernambuco, houve aumento de 40% nos casos quando comparado com a quantidade habitual de ocorrências. Ainda não existe estudo específico de longo prazo sobre esse tipo de acidente.

Devido à alta expressiva no preço do botijão de gás desde 2016, aliada à permissão de venda de álcool líquido, à pandemia, ao desemprego e à crise econômica, a população tem procurado qualquer alternativa para economizar e garantir comida na mesa. De acordo com pesquisa feita pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN, realizado em dezembro de 2020, cerca de 9% da população brasileira, ou 19 milhões de pessoas, estão em situação de vulnerabilidade alimentar. Em outras palavras, passam fome.

A prioridade é conseguir comprar comida, e não sobra dinheiro para garantir o gás. Estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e do Ministério de Minas e Energia (MME) mostra que o uso de lenha em residências, algo que vem caindo há anos, teve aumento de 1,8% em 2020 quando comparado ao ano de 2019 – hoje, 26,1% dos lares brasileiros usam pedaços de madeira para aquecer comida, água e, até, para iluminação.

Não é que o gás de cozinha não chegue a essas casas (segundo o IBGE, 91% das residências têm fogão e instalação para o GLP). O problema é a falta de renda, que acaba empurrando a população de volta para a lenha.

O levantamento da SBQ mostra também que o perfil de vítimas de incêndios causados por álcool mudou com a pandemia. O desemprego e o home office obrigaram as famílias a ficar em casa, e homens, idosos e crianças estão entre os mais atingidos – além das mulheres que, por uma pressão social criada a partir do machismo estrutural, ainda são responsáveis por cozinhar diariamente e ficam mais expostas a queimaduras.

Pessoas desempregadas são as mais suscetíveis a perdas em incêndios causados por álcool, e a maioria mora em casas muito simples, feitas de materiais altamente inflamáveis, onde muitos familiares vivem no mesmo cômodo, o que aumenta ainda mais o risco de tragédia.


E a queimadura não é algo que acaba logo após o incêndio. Dependendo da extensão e gravidade da lesão, a condição se torna crônica, e é preciso cuidado constante durante toda a vida. Um projeto de lei, que tramita desde 2019 na Câmara dos Deputados, tem o objetivo de identificar o grande queimado – paciente com mais de 20% do corpo atingido pelas chamas – como uma pessoa com necessidades especiais.

O Projeto de Lei nº 4.558/19, do deputado Marreca Filho (Patriota/MA), prevê que “toda pessoa portadora de sequelas graves advindas de queimaduras tem direito de receber assistência integral para promover sua cabal reinserção social por intermédio da reabilitação física, estética, psicológica, educacional e profissional”.

A ideia é garantir o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo próteses, órteses e cirurgias, assim como dar benefícios e isenções fiscais semelhantes às dadas a indivíduos com doenças graves ou deficiências. O texto também sugere que o poder público fique responsável por reinserir o paciente no mercado de trabalho.

DOR QUE NADA RESOLVE

O fogo queimou 40% do corpo de Leiliane. Do umbigo para cima, até o queixo, tudo foi tomado pelas chamas. Ao escutar os gritos da esposa, Alisson saiu correndo do banho, com uma toalha, para tentar apagar o fogo. Foi atingido também, e só conseguiu controlar as chamas que queimavam a mulher ao deitá-la no chão e jogar água em seu corpo. Foi uma vizinha que ouviu a gritaria, colocou os dois dentro do carro, e os levou correndo para a Unidade de Pronto Atendimento mais perto.


“De lá, nos encaminharam para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran), que é referência para queimados. Foi mais de uma hora de viagem, na ambulância com os bombeiros, sem remédio para dor. Fui gritando o caminho inteiro, parecia que eu ainda estava pegando fogo, não sei nem explicar”, recorda Leiliane, que se lembra como fosse ontem do dia em que sua vida mudou.

No hospital, ela foi direto para a sala vermelha e acabou sedada. Acordou apenas no dia seguinte, já toda enfaixada. A auxiliar de cozinha ficou internada durante três meses, passou por seis cirurgias, fez enxertos de pele e teve uma infecção generalizada que atrasou o tratamento em semanas.

Por causa das cicatrizes, Leiliane precisou passar por um procedimento chamado de “degola”, quando a pele do pescoço foi cortada de fora a fora para a instalação dos enxertos – no incêndio, a área abaixo do queixo ficou basicamente grudada no tórax, dificultando o movimento da cabeça.

“Achei que ia chegar lá e iam me dar uma pomada, sabe? Foi um sofrimento sem fim. Todo queimado precisa tomar banho no Hran, e é uma dor que não desejo para ninguém. Passei meses sem dormir, vivia tomando morfina ou tramal na veia para lidar com a dor. Todo mundo falava que o trauma ia passar, mas não passou”, conta.


Após receber alta e voltar para casa, ela continuou sem conseguir dormir. A auxiliar de cozinha conta que tentava se mexer durante a noite, mas sentia muita dor. Leiliane se tornou paciente frequente da UPA, onde ia periodicamente receber anestésicos potentes na veia – nada administrado de forma oral funciona para queimados. Ela também precisava ir dia sim, dia não para o Hran. Quando não havia ambulância disponível para fazer a viagem de cerca de 40 km entre a casa dela e o hospital, os vizinhos ajudavam.

Até hoje, três anos depois, Leiliane não consegue levantar o braço esquerdo e ainda espera mais um procedimento para tratar as sequelas da queimadura – com a pandemia, todas as cirurgias foram adiadas. Ela conta que a pele queimada vai encolhendo, repuxando, e que chega a ter dor nas costas pela retração da área.


“A gente fala que quando aumenta o gás, aumentam as queimaduras”, explica José Adorno, presidente da SBQ. O médico explica ser muito comum que famílias mais vulneráveis recorram a líquidos inflamáveis para cozinhar, mesmo sem terem conhecimento do perigo e de como usar o produto de maneira segura. Ele considera que é algo cultural: o brasileiro convive de forma negligente com inflamáveis, e está em risco mesmo sem saber.


Adorno diz que a queimadura causada por álcool costuma ter uma gravidade maior. “Além do quadro agudo, que pode causar morte, grande parte dos pacientes fica com cicatrizes deformantes, limitações, problemas físicos que exigem cuidado especial para sempre. Há ainda um estigma que dificulta a convivência. Ele sobrevive, mas com muita dificuldade. Hoje, a queimadura é tida como a quarta causa de anos de vida perdidos por incapacidade”, afirma o médico.

O paciente internado precisa passar por desbridamento, procedimento no qual, com uma lâmina, o tecido necrosado e queimado é removido a fim de que a cicatrização melhore. Além disso, há a necessidade de vários curativos, cirurgias e enxertos (em que a pele de uma parte do corpo é retirada para que seja colocada na área afetada). A equipe de atendimento deve ser multiprofissional, com fisioterapeuta, enfermeiro, cirurgião plástico, clínico geral e intensivista. “É um tratamento caro. Atualmente, o SUS prevê que o gasto gira entre R$ 1 mil e R$ 5 mil por dia para um queimado”, conta Adorno.

Mesmo com todos os procedimentos e acompanhamento profissional, a pele não se regenera, e a região queimada vai ter cicatrizes para sempre. Além das consequências físicas, ainda ficam as emocionais: muitos dos queimados precisam de atendimento psiquiátrico e psicológico para aprender a viver com a própria condição.


Leiliane é uma dessas pessoas. Ela se considera uma mulher vaidosa, e a queimadura extensa em uma área tão exposta mexeu com a sua cabeça. “Eu não aceitava que aquilo tivesse acontecido comigo, nem me aceitava naquela condição. Meus seios queimados, foi algo que mexeu muito comigo como mulher”, lembra. Hoje, ela faz acompanhamento com psiquiatra e toma remédios controlados para conseguir levar a vida.



A auxiliar de cozinha também sofre com o olhar cheio de preconceito dos outros. Até hoje, não conseguiu um novo emprego. Além de sofrer com o calor, já que a pele agora é muito sensível, ela não consegue sequer uma oportunidade. “Eles olham pra mim, e acham que eu vou trazer problemas. Eu queria muito voltar a trabalhar”, afirma.

Desempregada, Leiliane também não consegue auxílio do governo. Ela contratou um advogado, mas o laudo do Hran não foi suficiente para provar que precisa de ajuda financeira para sobreviver devido a um acidente causado, em primeiro lugar, pela falta de dinheiro. Agora, passou por uma perícia com o psiquiatra, e espera finalmente sensibilizar o governo.

Depois do acidente que mudou sua vida, a auxiliar de cozinha conta que ficou traumatizada com álcool, e comprar gás se tornou prioridade na casa dela. Ela, a filha e o marido vivem apenas com o salário dele, mas o gás está sempre pago. “Tenho trauma. Nunca mais peguei em álcool. Se a gente fica sem gás aqui, vou para a casa da minha tia e a gente come lá até conseguir comprar o botijão”, explica.

EM CHAMAS

“A grande diferença desse tipo de incêndio é que ele começa com a pessoa muito perto do local, aumentando o risco de danos e queimaduras mais graves. Se o fogo se alastrar, é importante sair o mais rapidamente possível do ambiente, sem se preocupar com bens materiais, e procurar a orientação dos bombeiros ou atendimento médico o quanto antes”, ensina o primeiro-tenente Gabriel Amaral, do Grupamento de Prevenção e Combate a Incêndio Urbano do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal.

A recomendação é resfriar a área queimada com água em temperatura ambiente e corrente. Não se deve usar gelo – a pele atingida perde a sensibilidade no momento da queimadura, e pode acabar piorando pela baixa temperatura. O ideal é que a região fique debaixo d’água por cerca de 20 minutos.

Por Juliana Contaifer
Metrópoles

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