sexta-feira, junho 12, 2020

Polícia investiga se menino Miguel foi jogado do alto de prédio no Recife

O pai de Miguel, Paulo Inocêncio, segura uma foto do filho em manifestação que pede justiça por sua morte. Foto: Guga Matos / JC Imagem / Folhapress

A história diz tanto sobre o Brasil, sua elite e suas mazelas que se tornou impossível ficar indiferente. Enquanto sua patroa, Sarí Corte Real, fazia as unhas com uma manicure no quinto andar de um arranha-céu de luxo no Recife, a empregada doméstica pernambucana Mirtes Renata Santana de Souza, de 33 anos, saiu para levar para passear a cadela da família da empregadora, Mel, uma buldogue de seis meses. Ao voltar, encontrou seu filho único, Miguel, de 5 anos, que havia levado consigo ao trabalho por não ter com quem deixá-lo, caído já quase sem vida na área da piscina. O garoto foi levado às pressas, no carro da patroa, para o Hospital da Restauração, mas morreu na pediatria meia hora depois de ter despencado de uma altura de 35 metros.

A principal hipótese para a morte é uma queda acidental, consequência direta do descaso da patroa, que deixou o garoto que devia estar sob seus cuidados vagar sozinho pelo prédio, e do acaso, sempre tão frequente nessas tragédias. O menino, buscando pela mãe, teria subido ao nono andar, entrado em uma área restrita e caído para a morte ao se desequilibrar. No entanto, duas semanas depois da tragédia, a Polícia Civil de Pernambuco começou a investigar uma outra possibilidade, a de que Miguel tenha sido jogado lá do alto.

Por enquanto, a principal evidência a sustentar essa linha de investigação é que Miguel não teria conseguido chegar sozinho ao local de onde caiu. Nesta semana, o delegado Ramon Teixeira determinou que os peritos do Instituto de Criminalística voltassem ao prédio. Os investigadores cogitam que seria difícil que Miguel, de 1,15 metro de altura, tivesse ultrapassado a mureta de 1,20 metro do corredor que levava à área onde ficam armazenados os condensadores de ar-condicionado do nono andar, de onde ele despencou. Essa área é de acesso restrito aos funcionários dos edifícios conhecidos como “Torre Gêmeas”, dois espigões de 41 andares e 134 metros de altura cada, intitulados Píer Mercúrio de Nassau e Píer Duarte Coelho. Os arranha-céus foram erguidos nas proximidades do cais de Santa Rita, uma área tombada pelo Patrimônio Histórico, e por isso são alvo de ação do Ministério Público. A construtora foi condenada em instâncias inferiores, e o caso está no Superior Tribunal de Justiça.

Para cair do nono andar, além de subir pela mureta e passar pela janela, o garoto teria ainda de caminhar sobre os equipamentos de ar refrigerado e escalar mais uma grade de 1,30 metro feita de hastes de alumínio. Para seguir nessa linha de investigação, e então decidir se vale aprofundá-la ou se tratou-se mesmo de um acidente, como tudo indica, a polícia vai ouvir moradores do nono andar e os funcionários do prédio responsáveis pelas chaves da área de acesso restrito. Por enquanto, falta tudo, além da suposição inicial: quem seria o suspeito, o que estaria fazendo ali e por que teria decidido jogar o garoto.

“A princípio, ele tentou escalar e caiu lá de cima de forma acidental. Mas as investigações não estão conclusas. Falta comprovar se é possível ele ter caído sozinho”, disse o perito criminal André Amaral.

A mãe de Miguel, que ajudou a chamar a atenção para o caso com seu depoimento sobre o descuido mortal da patroa para com seu filho, não descarta a hipótese de que ele tenha sido jogado. “Agora, mais calma, olhei atentamente as imagens feitas pela câmera do elevador. O meu filho desce no nono andar, abre aquela porta de incêndio e passa por ela como se tivesse encontrado alguém do outro lado. Quem poderia estar ali? Só a polícia poderá descobrir”, disse Mirtes.


Moradores reforçaram nas redes sociais a tese do assassinato, a partir da mesma questão sobre a dificuldade de escalar a mureta. Postaram de forma anônima imagens em que fazem medições com trenas e colocam crianças de 5 anos ao lado do local por onde Miguel passou para mostrar quão difícil é uma criança escalar uma mureta de 1,20 metro. “A história de que ele subiu na mureta, caminhou pelo duto de ar-condicionado e subiu pela grade não nos convenceu”, escreveu um morador que fez questão de postar sua foto no Instagram ao lado da mureta. “Reparem que tenho 1,75 metro de altura e até para mim essa janela é alta”, escreveu.

“A POLÍCIA INVESTIGA A HIPÓTESE DE QUE MIGUEL TENHA SIDO JOGADO. O PRINCIPAL INDÍCIO A SUSTENTAR ESSA TESE É QUE O GAROTO, DE 5 ANOS E 1,15 METRO, NÃO CONSEGUIRIA SUBIR SOZINHO NA MURETA DE 1,20 QUE LEVAVA À ÁREA DE ONDE ELE DESPENCOU”

Como Miguel estava sob seus cuidados, Sarí foi presa e autuada por homicídio culposo, quando o ato não é considerado intencional. Foi solta em menos de 24 horas após pagar uma fiança de R$ 20 mil. A prisão ocorreu depois de a polícia ter acesso às imagens do circuito de câmeras. Essas imagens mostram Miguel insistindo para entrar no elevador. O garoto entra lá seis vezes e em quatro delas Sarí o convence a sair. Na quinta vez ele entra correndo, e a patroa o puxa lá de dentro pelo braço. Na sexta vez, Miguel adentra o elevador correndo e aperta quatro botões, incluindo o sétimo e o nono. Sarí surge em seguida e trava a porta com o braço. Ela argumenta e, em seguida, aperta no botão da cobertura. É um mistério o motivo pelo qual a patroa mandou o menino para o último andar. As portas se fecham, e Miguel segue sozinho. O elevador para no sétimo, mas ele não desce. A próxima parada é o nono. Lá, o menino sai, abre a porta de incêndio e adentra para a morte. “Por que a senhora apertou o botão da cobertura? Por quê?”, questionou Mirtes pelo celular. Sarí não respondeu. Pediu desculpas aos prantos e desligou.

Segundo a polícia de Pernambuco, Sarí foi presa porque agiu com negligência ao deixar o garoto sozinho no elevador. Ela vai responder ao processo em liberdade, acusada de abandono de incapaz, o que prevê uma pena de quatro a 12 anos de reclusão. Sarí chegou a ir ao velório de Miguel com o marido, Sérgio Hacker, prefeito da cidade litorânea de Tamandaré, a 100 quilômetros do Recife. O casal queria dar um abraço em Mirtes, mas foi hostilizado por populares e teve de deixar o local. Na sexta-feira 5, Sarí escreveu uma carta aberta à ex-funcionária. Ela disse: “Como mãe, sou absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na sua vida e na vida da sua família (...) Te peço perdão. Não tenho o direito de falar em dor. Mas, esse pesar, ainda que de forma incomparável, vai me acompanhar também pelo resto da vida”.

A nova linha de investigação pode ter impacto direto nas acusações contra Sarí. Se Miguel tiver sido jogado, ela seria inocentada por ter deixado o garoto sozinho? Dois criminalistas ouvidos por ÉPOCA divergem na resposta. O advogado Pierpaolo Bottini assegura que a patroa se livraria da responsabilidade. “Em tese, ela seria inocentada, caso seja provado que houve uma intervenção de um outro agente que não seja ela (Sarí). Nesse caso, a patroa deixaria de responder por um crime”, afirmou Bottini. Já Augusto de Arruda Botelho tem outra avaliação. “Uma resposta mais precisa depende da análise das provas. Em tese, se um crime de homicídio ocorre em decorrência do abandono de um incapaz, quem tinha o dever de cuidado desse incapaz não deixa de responder pelo crime de abandono. A pena pode, inclusive, ser agravada, caso dolosamente esse abandono cause lesões ou morte”, disse.

Sarí Corte Real e Sérgio Hacker (PSB) são conhecidos na sociedade pernambucana. Ela é maratonista e ele pertence a uma oligarquia regional que comanda administrações municipais de cidades do litoral. Sérgio é prefeito de Tamandaré; sua mãe, Isabel Hacker (PSB) administra a cidade de Rio Formosa; e seu tio, France Hacker (PSB) está à frente da prefeitura de Sirinhaém, todas próximas umas das outras. Por causa da denúncia de que Sérgio Hacker mantém funcionários-fantasmas na folha de pagamentos de Tamandaré, auditores do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco bateram à porta de seu gabinete na terça-feira 9 em busca de provas. O órgão apreendeu documentos que comprovam que Mirtes e sua mãe recebiam sem trabalhar em órgão público. Mirtes estava lotada no Setor de Atividades e Manutenção da prefeitura, enquanto a mãe dela, Marta Maria, recebia como gerente de divisão. Ambas tinham salário de R$ 1.300. A Câmara de Vereadores de Tamandaré já fala em impeachment de Sérgio Hacker.

Sarí e o marido mantêm uma casa à beira-mar em Tamandaré. Era ali que a família estava confinada por causa da pandemia. Até que Sarí pediu que profissionais de beleza fossem lá fazer unha, cabelo e limpeza de pele. Uma delas teria levado o coronavírus para a casa de praia e contaminado parte da família, incluindo Sarí e a filha de 3 anos. Mirtes e Miguel também acabaram infectados, mas ninguém desenvolveu os sintomas.

Sarí então levou a filha para o isolamento no apartamento do Recife; Mirtes e Miguel também voltaram para a capital. “Queria muito que o tempo voltasse atrás para o meu filho poder estar aqui ao meu lado. Quando eu estava descendo para passear com a Mel, ele e a filha da dona Sarí pediram para ir comigo, mas eles estavam correndo pela sala, bagunçando tudo e não os levei como castigo. Se arrependimento matasse, eu estaria enterrada ao lado do meu filho”, contou Mirtes.

A vida de Mirtes e a de Sarí se cruzaram em 2016. Marta Maria, mãe de Mirtes, passava roupa e fazia faxina no apartamento de 247 metros quadrados da família Corte Real. Marta reclamava para os patrões de que não dava conta do serviço e conseguiu convencê-los a contratar a filha para fazer uma diária semanal, a R$ 120. Mirtes se mostrou tão eficiente que foi contratada. Dois meses depois, foi comunicada por Sarí que tanto ela quanto a mãe seriam incluídas na folha de pagamentos da prefeitura. Para isso, tinham de abrir conta no Banco do Brasil. “Eu aceitei porque passaríamos a ter vantagens, como salário-família”, justificou Mirtes.

Na casa dos Corte Real, as tarefas ficaram divididas assim: Marta cuidava da roupa e da faxina de metade do apartamento. Mirtes ficava incumbida da outra metade e da cozinha. “Nunca fui vítima de preconceito naquela casa. Eu amava aquela família. Sinto saudades das duas crianças — filhas dos meus patrões — e até da cadela que eu levava para passear”, disse Mirtes. “Mas não dá para falar em perdão agora, porque a dor que eu sinto é muito grande (...) Independentemente de como meu filho caiu daquele prédio, se a dona Sarí tivesse tido um pouquinho de paciência com meu único filho, eu não estaria mergulhada nesta dor sem fim”, desabafou.

Manifestantes fizeram um protesto em frente ao prédio de luxo de onde o menino caiu para a morte de uma altura de 35 andares. Foto: Reprodução


Por Ullisses Campbell
EPOCA

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