Xeque Rodrigo Jalloul em cerimônia em memória do general iraniano Qassem Soleimani em hotel de São Paulo, no último domingo Denis Vieira/Divulgação
Flores dispostas em dois caixões de madeira simbolizavam o respeito à memória do general iraniano Qasem Soleimani e do paramilitar iraquiano Abu Mehdi al-Muhandis, em um hotel de São Paulo, no último domingo. Ambos foram mortos em um ataque ordenado pelos Estados Unidos, na semana passada, e estavam representados em fotos em uma cerimônia coordenada pelo paulistano Rodrigo Jalloul, primeiro brasileiro a ser reconhecido oficialmente como clérigo xiita, título que lhe confere autoridade espiritual para se pronunciar sobre questões religiosas. Compareceram autoridades políticas como o ex-deputado estadual Jamil Murad, o secretário-geral do Instituto Brasil-Palestina, Marcos Tenório, o cônsul sírio Elias Bara, além de representantes de organizações da sociedade civil, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Sindicato dos Metalúrgicos.
Dias depois do ataque, o Itamaraty expressou em comunicado apoio aos americanos na luta contra o “terrorismo” e se colocou à disposição para ajudar nos esforços para evitar uma “escalada de conflitos”. O alinhamento aos EUA na escalada de tensão contra o Irã é definido por Jalloul como um “erro” e “falta de inteligência”.
“O governo Bolsonaro não está sendo diplomático e não age de acordo com a democracia e a forma de pensar do povo brasileiro, que é pacífica. Falta informação e cultura”, critica o clérigo, em entrevista a VEJA por telefone.
Na avaliação de Jalloul , a posição do Brasil no conflito representa um retrocesso diplomático e pode trazer impactos econômicos, já que o Irã é um importante comprador da carne bovina brasileira, além de outros insumos, como milho, soja e açúcar. Não prevê, no entanto, riscos iminentes à segurança nacional e afasta a possibilidade de o Brasil entrar em uma espécie de “lista de inimigos” de Teerã. “Seria exagero. (…) Considerar o Brasil como um alvo (de guerra), até então, não vejo possibilidade”, diz.
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Confira os principais trechos da entrevista.
Depois do assassinato do general Soleimani, o Itamaraty divulgou um comunicado em que expressa apoio aos americanos e se coloca disposto a ajudar para evitar uma “escalada de conflitos”. Como recebeu a posição do Brasil?
É um erro e uma falta de inteligência. O governo Bolsonaro não está sendo diplomático e não age de acordo com a democracia e a forma de pensar do povo brasileiro, que é pacífica. Falta informação e cultura. Apesar de ter sido eleito democraticamente, Bolsonaro tem sido uma decepção, inclusive para seus eleitores. É desprovido de conhecimento e preparo. Usa o pessoal e traz ao profissional. Quer se igualar a Trump, mas esquece que os EUA têm bala na agulha, dinheiro e poder, para assumir seus erros. O Brasil está sendo entregue de bandeja aos americanos.
Nos negócios, que consequências o Brasil pode sofrer como reflexo da tensão entre EUA e Irã?
Há uma perda grande no comércio para o Brasil com países árabes para ficar ao lado de Israel, que compra o mínimo, em termos comparativos. O Irã, até então o terceiro maior comprador de carne bovina do Brasil, também compra grãos, como milho e soja, e açúcar. Fiscalizava frigoríficos para o governo iraniano no Brasil e lembro que há quatro anos, em São Paulo, havia 33 frigoríficos trabalhando ativamente, todos os dias, produzindo para o Irã. Cada um havia cerca de 700 funcionários em uma linha de produção. Há um impacto econômico potencial sim.
O Brasil pode entrar para uma “lista de inimigos” do Irã?
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Seria exagero. (…) Considerar o Brasil como um alvo (de guerra), até então, não vejo possibilidade. Dependendo da posição do Bolsonaro, de querer se unir aos EUA para atacar o Irã, o que está longe de acontecer, isso pode mudar. De qualquer forma, é importante considerar que uma relação diplomática leva anos para conquistar, e com poucas palavras, é destruída. E o que o governo brasileiro fez neste primeiro ano de governo não foi construir laços e abrir portas. O Brasil está se tornando um país evangélico, trabalhando a serviço de Israel e dos EUA.
O líder supremo do Irã, Ali Khamenei, e os principais comandantes militares do país prometem forte retaliação contra os EUA. No momento, 13 cenários são considerados. O que seria uma resposta contundente e à altura?
A princípio, é a retirada das tropas americanas de todo o Oriente Médio. Os EUA perdem muito com isso, porque os americanos lucram com o petróleo que exploram na região, e também com as guerras. O armamento do Estado Islâmico (EI) que o general Soleimani combateu, muitas vezes, era americano. O pretexto inicial era a acusação de que Saddam Hussein tinha armamento nuclear para atacar o mundo. Saíram e voltaram com a “desculpa” do EI, criada pelos próprios americanos. Hoje em dia não tem mais motivo para as tropas americanas estarem na região. O maior castigo, segundo o próprio líder supremo, é ter que deixar o Oriente Médio. Significaria uma primeira grande derrota.
Mas é suficiente? Se não, o que seria uma vingança adequada?
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Não é suficiente e não existe uma resposta exatamente “à altura” do general que foi morto. Mas pelo que os iranianos tem gritado nas ruas, seria a cabeça do próprio Trump. O governo iraniano deixa claro que não é favorável de matar soldados, que são também civis. O líder supremo conscientizou o povo iraniano de que o povo americano não é inimigo, mas o governo americano. O povo americano jamais deve pagar o preço de um governo que explora, injusto e opressor. Acredito que teria que ser a cabeça de alguém influente do governo americano.
Acredita no risco iminente de uma guerra entre EUA e Irã?
Acredito que, por parte dos iranianos, a princípio, não. Os iranianos teriam força para atacar os americanos no Iraque. Não o fizeram, porque os EUA são protegidos por grandes organizações mundiais, mesmo depois de um ataque terrorista como este. Já o Irã, se jogar uma bomba, “é um país terrorista”. (…) O governo iraniano diz que se quisesse atacar já teria atacado. A intenção não é atacar, e, sim, uma guerra de inteligência. Não se pode agir pela emoção, apesar da cobrança da população iraniana nas ruas.
Pelo menos 50 pessoas foram mortas e 213 ficaram feridas no que seria hoje o funeral de Soleimani. Nesta terça-feira, houve uma grande manifestação em diversas cidades do Irã. O povo iraniano está mais unido?
Sim. Até então o povo iraniano saía nas ruas contra o governo pelo aumento das mercadorias, da gasolina, e dos embargos americanos. Agora, com 15 milhões de iranianos nas ruas do país, segundo estimativa do governo, houve uma união, provocada pela morte do general Soleimani. Uma união de sunitas, xiitas, zoroastristas, judeus e até pessoas que são contra a Revolução Islâmica. Todos se juntaram para gritar “morte à América”. O povo iraniano está com muito mais sede de vingança do que o próprio governo.
Como avalia a situação do general iraniano Esmail Ghaani, que substituiu Soleimani?
Tem a mesma posição, uma grande experiência, e um ponto a mais: terá a liberdade em atuar um pouco a mais do que o Soleimani na região devido à periculosidade já demonstrada pelos americanos. Deve ter autorizações para agir sem a autorização do líder supremo.
Qual é o entendimento da comunidade iraniana que mora no Brasil sobre as motivações do assassinato?
Foi uma tática intimidatória, uma demonstração de força Os EUA tentaram ganhar referência para mostrar que não têm medo dos iranianos e estão prontos para atacar. (…) O general Soleimani representava o controle do Oriente Médio. Era quem dava equilíbrio e segurança à região. Se não fosse ele, Israel já teria exterminado o povo palestino, invadido boa parte do Irã, Síria e Iraque, por exemplo.
Por Veja
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