O Brasil acaba de perder o certificado de país livre do sarampo. Depois de passar quase duas décadas registrando alguns poucos casos importados da doença, o país contabiliza neste ano 5,4 mil doentes e seis mortos. Uma das razões da volta do sarampo, segundo especialistas, é a desinformação dos pais, que têm caído em fake news que acusam a vacina de ser perigosa para a saúde dos filhos. Dos seis mortos, quatro eram bebês que não haviam sido vacinados.
O medo das vacinas não é novo no Brasil. É até mais antigo do que a célebre Revolta da Vacina, de 1904. O país viveu um drama sanitário do mesmo tipo no decorrer do século 19. A doença em questão era a varíola — hoje erradicada do mundo. Apesar de os governos de dom João VI, dom Pedro I e dom Pedro II terem oferecido a vacina gratuitamente aos súditos, muitos fugiam dos vacinadores, o que contribuía para que as epidemias de varíola fossem recorrentes e devastadoras.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a baixa adesão às campanhas de vacinação foi um problema que atormentou os senadores do início ao fim do Império.
— Em Santa Catarina, têm morrido para cima de 2 mil pessoas — discursou em 1826 o senador João Rodrigues de Carvalho (CE), citando a província da qual fora presidente (governador). — Eu estabeleci ali a vacina, deixando-a encarregada a um cirurgião hábil, mas quase ninguém compareceu. Os povos estão no erro de que a vacina não faz efeito. Quando o interesse público não se identifica com o interesse particular, nada se consegue.
Por causa das bolhas cheias que se espalhavam pelo corpo do infectado, a doença era popularmente chamada de “bexigas”. Mesmo nos casos em que a varíola acabava não sendo letal, os “bexiguentos” sobreviventes pouco comemoravam. Depois de secar e cair, as bolhas costumavam deixar cicatrizes profundas que deformavam o rosto para sempre.
— As bexigas são um dos maiores flagelos que devastam a humanidade — afirmou, também em 1826, o senador Antônio Gonçalves Gomide (MG). — Na minha província, foram tantas as mortes, que o arraial da Passagem ficou reduzido à metade. Isso não pode ser senão por desleixo, ao menos depois de haver um específico [a vacina] tão seguro.
Os senadores Carvalho e Gomide trataram da varíola durante as discussões, no Plenário do Senado, de um projeto de lei que autorizaria o governo a remanejar verbas do Orçamento para a vacinação, de modo a “vulgarizar a prática em todo o Império”. Mais especificamente, o dinheiro custearia as gratificações dos médicos vacinadores. Os senadores e os deputados, entendendo que o problema era mesmo grave, aprovaram a liberação das verbas.
A vacina era uma grande novidade. Em 1796, na Inglaterra, o médico Edward Jenner observou que os camponeses que ordenhavam vacas infectadas e contraíam a varíola bovina — uma variação inofensiva da doença — por alguma razão passavam a sair ilesos dos surtos de varíola humana. Para verificar se não se tratava de mera coincidência, ele decidiu retirar o pus das bolhas localizadas nas mamas das vacas doentes e inoculá-lo em cobaias humanas. O experimento teve o resultado imaginado. Jenner, assim, comprovou o poder protetor do pus infectado com a varíola animal.
O médico inglês batizou o pus terapêutico de “vacina”, uma derivação da palavra latina vacca. Na época, bastava dizer “vacina”, sem especificar a doença. Por muito tempo, a varíola foi a única enfermidade contra a qual existiu imunização.
No entanto, parte da população brasileira, sem entender como a vacina funcionava, tinha pânico dessa novidade médica. Um dos medos era que a imunização, em vez de evitar, desencadeasse a varíola e levasse à morte. Reforçava esse temor o fato de o vacinado desenvolver uma bolha, ainda que superficial e inofensiva, no local da inoculação. Outro medo era que o pus de origem animal transmitisse doenças bovinas para as pessoas.
Há relatos de mães que escondiam os filhos debaixo da cama ao ouvir o vacinador bater na porta e até de famílias inteiras que fugiam do povoado quando a campanha de vacinação chegava. Inclusive entre os senadores se encontrava desinformação.
— Eu não sei se a medicina já decidiu esta importante questão: se a vacina prejudica a saúde futura dos meninos — disse o senador Visconde de Jequitinhonha (BA) num discurso em 1862.
— É uma questão decidida há muitos anos — respondeu, indignado, o senador Cruz Jobim (ES), que era médico e defensor ardoroso da vacina.
— Decidida em que sentido? — devolveu o Visconde de Jequitinhonha. — Li ainda outro dia dúvidas acerca disso.
Foi a deixa para que Cruz Jobim desse uma palestra aos colegas:
— Na opinião dos inimigos da vacina, ela dá ocasião ao desenvolvimento de muitas outras moléstias que aumentam a mortalidade dos povos. Semelhante opinião é gratuita e infundada. Nenhuma dúvida há de que o preservativo é de grande vantagem. Há 20 anos, tendo aparecido a bexiga em uma horda de selvagens no Canadá, mais de 20 mil morreram. Também tendo aparecido a bexiga em selvagens de algumas ilhas do Pacífico, quase todos vieram a sucumbir. Estamos muito longe de observar essas horrorosas cenas nos países onde a vacina está em prática atualmente.
O senador médico continuou:
— Para que caluniar a vacina com suposições falsas? Para que atribuir-lhe males que ela não produz? Pôr em dúvida a eficácia da descoberta de Jenner é destruir a confiança de tão útil preservativo e expor a vida de milhares de pessoas a um dos maiores flagelos, talvez o mais mortífero de quantos têm aparecido no mundo.
Não se pode dizer que o medo da população era de todo absurdo. Na época, a ciência era incapaz de explicar como a vacina protegia as pessoas. Desconheciam-se os vírus e o sistema imunológico. Não se sabia que, ao introduzir-se um vírus enfraquecido no organismo, a própria pessoa passava a produzir anticorpos contra a doença.
Edward Jenner fez sua descoberta a partir de meras observações empíricas. Na falta de uma explicação científica plausível, muitos médicos condenavam a imunização. Entre eles, estava o português Heliodoro Carneiro, que em 1808 publicou um livro repleto de ataques à vacina. A obra, lançada em Lisboa, ajudou a disseminar o medo na Colônia.
Além disso, espalhavam-se mentiras deliberadamente. Na vila de Paracatu (MG), em 1832, o anúncio de uma campanha de vacinação fez a população apedrejar a casa do presidente da Câmara Municipal (cargo hoje equivalente ao de prefeito) e quase linchá-lo. Essa pequena revolta da vacina estourou depois que bilhetes e folhetos anônimos começaram a circular na vila avisando que a verdadeira intenção do político era infectar e matar todo mundo. Mais tarde, descobriu-se que as notícias falsas haviam partido do juiz de Paracatu, que era inimigo declarado do presidente da Câmara Municipal.
Antes de se mudar para o Brasil, dom João VI fez seus filhos serem vacinados em público, justamente para dissipar o temor dos súditos portugueses e convencê-los de que era infundada a história de que a vacina provocava as bexigas. O príncipe regente se engajou porque conhecia bem a devastação da varíola. Ele havia perdido dois irmãos, um genro e um filho para a doença. Sua mulher, dona Carlota Joaquina, era uma sobrevivente e carregava as cicatrizes indeléveis no rosto — o que ajuda a explicar a fama de feia.
Por essa razão, em 1811, apenas três anos depois de transferir a sede do Império português para o Brasil, dom João VI criou a Junta de Instituição Vacínica da Corte, destinada a executar a imunização em massa no Rio de Janeiro e a enviar a vacina para as províncias. A nova repartição pública também importava de Londres o pus animal. O material não podia ser extraído das vacas brasileiras porque elas, ao contrário das inglesas, não sofriam da varíola bovina.
A historiadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz (instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz) Maria Rachel Fróes da Fonseca explica que foi então que surgiu a primeira política pública de saúde destinada a proteger toda a população do Brasil:
— No fim da Colônia e durante o Império, enquanto os serviços de saúde e higiene pública ainda se encontravam muito precários, a vacinação antivariólica funcionava como um dos poucos recursos que apresentava alguma eficiência.
Edward Jenner havia ido ainda mais longe nas suas descobertas. Ele percebeu que a bolha benigna que se formava no braço da pessoa após a vacinação também continha o pus protetor contra a varíola. Assim, cada indivíduo vacinado naturalmente se tornava produtor da vacina. Oito dias depois da imunização, a pessoa tinha que se apresentar novamente ao vacinador, para que ele estourasse a sua bolha e inoculasse esse pus em outras pessoas. O processo se chamava vacinação braço a braço.
Foi braço a braço que a vacina contra a varíola chegou ao Brasil pela primeira vez. Em 1804, o Marquês de Barbacena (que mais tarde se tornaria senador) mandou para Lisboa sete escravos meninos acompanhados de um médico, que aprenderia na capital portuguesa a técnica da vacinação. Apenas uma das crianças foi vacinada em Lisboa. Durante a longa viagem de volta, em navio, o médico passou o pus vacínico de um escravo para outro a cada oito dias. Assim que o navio aportou em Salvador, o Marquês de Barbacena foi a primeira pessoa a ser imunizada no território brasileiro.
O historiador Fillipe dos Santos Portugal, autor de um estudo sobre a introdução da vacina em Portugal e no Brasil, diz que, ao contrário do Marquês de Barbacena, a elite do Império resistia a receber o pus dos escravos:
Quando publicavam anúncios convocando para a vacinação, as autoridades pediam que os senhores dessem banho nos escravos antes de levá-los ao vacinador. Mesmo assim, os brancos, quando tinham que se vacinar, evitavam o serviço público e recorriam a médicos particulares.
O instrumental de vacinação era diferente do que é hoje. A seringa com agulha só seria inventada por volta de 1850. O que se usava era a lanceta, uma espécie de estilete. O médico vacinador embebia de pus a ponta da lanceta e depois fazia cortes pequenos e superficiais no braço da pessoa, para que a vacina entrasse em contato com o sangue.
A reapresentação oito dias depois era importante não só para obter mais pus vacínico, mas também para verificar se a pessoa havia mesmo sido imunizada. A ausência de bolha no braço era sinal de que o vírus não fora inoculado adequadamente e o indivíduo não estava protegido, o que exigia uma nova aplicação da vacina.
O problema é que muita gente simplesmente não voltava ao vacinador, fosse pelos mitos em torno da vacina, fosse pelo incômodo da aplicação, fosse por pura negligência. Os escravos eram os que menos retornavam. Muitos senhores ignoravam a exigência para evitar que eles perdessem o dia de trabalho.
Como consequência do não retorno no oitavo dia, pessoas que acreditavam estar imunizadas acabavam mais tarde sendo pegas pela varíola. Esses contágios inesperados reforçavam a perigosa crença popular de que a vacina não servia para nada ou provocava a própria enfermidade.
Em todo o Império, as epidemias se sucediam. Apenas no Rio de Janeiro, que era a cidade onde a vacina estava mais disponível, as bexigas mataram 7 mil pessoas em toda a década de 1870 — 2,5% da população. Nos anúncios de jornal do tipo “procura-se escravo fugido”, era comum que os senhores apontassem entre as características do fugitivo a presença de cicatrizes de bexigas.
A varíola aparecia com frequência nas falas do trono, os pronunciamentos que o imperador proferia no Senado, no início e no fim de cada ano, nos quais analisava os grandes problemas nacionais. Na fala do trono inaugural de 1868, por exemplo, dom Pedro II disse que a doença estava dificultando o avanço de tropas brasileiras na Guerra do Paraguai:
— Em Santa Catarina, têm morrido para cima de 2 mil pessoas — discursou em 1826 o senador João Rodrigues de Carvalho (CE), citando a província da qual fora presidente (governador). — Eu estabeleci ali a vacina, deixando-a encarregada a um cirurgião hábil, mas quase ninguém compareceu. Os povos estão no erro de que a vacina não faz efeito. Quando o interesse público não se identifica com o interesse particular, nada se consegue.
Por causa das bolhas cheias que se espalhavam pelo corpo do infectado, a doença era popularmente chamada de “bexigas”. Mesmo nos casos em que a varíola acabava não sendo letal, os “bexiguentos” sobreviventes pouco comemoravam. Depois de secar e cair, as bolhas costumavam deixar cicatrizes profundas que deformavam o rosto para sempre.
— As bexigas são um dos maiores flagelos que devastam a humanidade — afirmou, também em 1826, o senador Antônio Gonçalves Gomide (MG). — Na minha província, foram tantas as mortes, que o arraial da Passagem ficou reduzido à metade. Isso não pode ser senão por desleixo, ao menos depois de haver um específico [a vacina] tão seguro.
Os senadores Carvalho e Gomide trataram da varíola durante as discussões, no Plenário do Senado, de um projeto de lei que autorizaria o governo a remanejar verbas do Orçamento para a vacinação, de modo a “vulgarizar a prática em todo o Império”. Mais especificamente, o dinheiro custearia as gratificações dos médicos vacinadores. Os senadores e os deputados, entendendo que o problema era mesmo grave, aprovaram a liberação das verbas.
A vacina era uma grande novidade. Em 1796, na Inglaterra, o médico Edward Jenner observou que os camponeses que ordenhavam vacas infectadas e contraíam a varíola bovina — uma variação inofensiva da doença — por alguma razão passavam a sair ilesos dos surtos de varíola humana. Para verificar se não se tratava de mera coincidência, ele decidiu retirar o pus das bolhas localizadas nas mamas das vacas doentes e inoculá-lo em cobaias humanas. O experimento teve o resultado imaginado. Jenner, assim, comprovou o poder protetor do pus infectado com a varíola animal.
O médico inglês batizou o pus terapêutico de “vacina”, uma derivação da palavra latina vacca. Na época, bastava dizer “vacina”, sem especificar a doença. Por muito tempo, a varíola foi a única enfermidade contra a qual existiu imunização.
No entanto, parte da população brasileira, sem entender como a vacina funcionava, tinha pânico dessa novidade médica. Um dos medos era que a imunização, em vez de evitar, desencadeasse a varíola e levasse à morte. Reforçava esse temor o fato de o vacinado desenvolver uma bolha, ainda que superficial e inofensiva, no local da inoculação. Outro medo era que o pus de origem animal transmitisse doenças bovinas para as pessoas.
Há relatos de mães que escondiam os filhos debaixo da cama ao ouvir o vacinador bater na porta e até de famílias inteiras que fugiam do povoado quando a campanha de vacinação chegava. Inclusive entre os senadores se encontrava desinformação.
— Eu não sei se a medicina já decidiu esta importante questão: se a vacina prejudica a saúde futura dos meninos — disse o senador Visconde de Jequitinhonha (BA) num discurso em 1862.
— É uma questão decidida há muitos anos — respondeu, indignado, o senador Cruz Jobim (ES), que era médico e defensor ardoroso da vacina.
— Decidida em que sentido? — devolveu o Visconde de Jequitinhonha. — Li ainda outro dia dúvidas acerca disso.
Foi a deixa para que Cruz Jobim desse uma palestra aos colegas:
— Na opinião dos inimigos da vacina, ela dá ocasião ao desenvolvimento de muitas outras moléstias que aumentam a mortalidade dos povos. Semelhante opinião é gratuita e infundada. Nenhuma dúvida há de que o preservativo é de grande vantagem. Há 20 anos, tendo aparecido a bexiga em uma horda de selvagens no Canadá, mais de 20 mil morreram. Também tendo aparecido a bexiga em selvagens de algumas ilhas do Pacífico, quase todos vieram a sucumbir. Estamos muito longe de observar essas horrorosas cenas nos países onde a vacina está em prática atualmente.
O senador médico continuou:
— Para que caluniar a vacina com suposições falsas? Para que atribuir-lhe males que ela não produz? Pôr em dúvida a eficácia da descoberta de Jenner é destruir a confiança de tão útil preservativo e expor a vida de milhares de pessoas a um dos maiores flagelos, talvez o mais mortífero de quantos têm aparecido no mundo.
Não se pode dizer que o medo da população era de todo absurdo. Na época, a ciência era incapaz de explicar como a vacina protegia as pessoas. Desconheciam-se os vírus e o sistema imunológico. Não se sabia que, ao introduzir-se um vírus enfraquecido no organismo, a própria pessoa passava a produzir anticorpos contra a doença.
Edward Jenner fez sua descoberta a partir de meras observações empíricas. Na falta de uma explicação científica plausível, muitos médicos condenavam a imunização. Entre eles, estava o português Heliodoro Carneiro, que em 1808 publicou um livro repleto de ataques à vacina. A obra, lançada em Lisboa, ajudou a disseminar o medo na Colônia.
Além disso, espalhavam-se mentiras deliberadamente. Na vila de Paracatu (MG), em 1832, o anúncio de uma campanha de vacinação fez a população apedrejar a casa do presidente da Câmara Municipal (cargo hoje equivalente ao de prefeito) e quase linchá-lo. Essa pequena revolta da vacina estourou depois que bilhetes e folhetos anônimos começaram a circular na vila avisando que a verdadeira intenção do político era infectar e matar todo mundo. Mais tarde, descobriu-se que as notícias falsas haviam partido do juiz de Paracatu, que era inimigo declarado do presidente da Câmara Municipal.
Antes de se mudar para o Brasil, dom João VI fez seus filhos serem vacinados em público, justamente para dissipar o temor dos súditos portugueses e convencê-los de que era infundada a história de que a vacina provocava as bexigas. O príncipe regente se engajou porque conhecia bem a devastação da varíola. Ele havia perdido dois irmãos, um genro e um filho para a doença. Sua mulher, dona Carlota Joaquina, era uma sobrevivente e carregava as cicatrizes indeléveis no rosto — o que ajuda a explicar a fama de feia.
Por essa razão, em 1811, apenas três anos depois de transferir a sede do Império português para o Brasil, dom João VI criou a Junta de Instituição Vacínica da Corte, destinada a executar a imunização em massa no Rio de Janeiro e a enviar a vacina para as províncias. A nova repartição pública também importava de Londres o pus animal. O material não podia ser extraído das vacas brasileiras porque elas, ao contrário das inglesas, não sofriam da varíola bovina.
A historiadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz (instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz) Maria Rachel Fróes da Fonseca explica que foi então que surgiu a primeira política pública de saúde destinada a proteger toda a população do Brasil:
— No fim da Colônia e durante o Império, enquanto os serviços de saúde e higiene pública ainda se encontravam muito precários, a vacinação antivariólica funcionava como um dos poucos recursos que apresentava alguma eficiência.
Edward Jenner havia ido ainda mais longe nas suas descobertas. Ele percebeu que a bolha benigna que se formava no braço da pessoa após a vacinação também continha o pus protetor contra a varíola. Assim, cada indivíduo vacinado naturalmente se tornava produtor da vacina. Oito dias depois da imunização, a pessoa tinha que se apresentar novamente ao vacinador, para que ele estourasse a sua bolha e inoculasse esse pus em outras pessoas. O processo se chamava vacinação braço a braço.
Foi braço a braço que a vacina contra a varíola chegou ao Brasil pela primeira vez. Em 1804, o Marquês de Barbacena (que mais tarde se tornaria senador) mandou para Lisboa sete escravos meninos acompanhados de um médico, que aprenderia na capital portuguesa a técnica da vacinação. Apenas uma das crianças foi vacinada em Lisboa. Durante a longa viagem de volta, em navio, o médico passou o pus vacínico de um escravo para outro a cada oito dias. Assim que o navio aportou em Salvador, o Marquês de Barbacena foi a primeira pessoa a ser imunizada no território brasileiro.
O historiador Fillipe dos Santos Portugal, autor de um estudo sobre a introdução da vacina em Portugal e no Brasil, diz que, ao contrário do Marquês de Barbacena, a elite do Império resistia a receber o pus dos escravos:
Quando publicavam anúncios convocando para a vacinação, as autoridades pediam que os senhores dessem banho nos escravos antes de levá-los ao vacinador. Mesmo assim, os brancos, quando tinham que se vacinar, evitavam o serviço público e recorriam a médicos particulares.
O instrumental de vacinação era diferente do que é hoje. A seringa com agulha só seria inventada por volta de 1850. O que se usava era a lanceta, uma espécie de estilete. O médico vacinador embebia de pus a ponta da lanceta e depois fazia cortes pequenos e superficiais no braço da pessoa, para que a vacina entrasse em contato com o sangue.
A reapresentação oito dias depois era importante não só para obter mais pus vacínico, mas também para verificar se a pessoa havia mesmo sido imunizada. A ausência de bolha no braço era sinal de que o vírus não fora inoculado adequadamente e o indivíduo não estava protegido, o que exigia uma nova aplicação da vacina.
O problema é que muita gente simplesmente não voltava ao vacinador, fosse pelos mitos em torno da vacina, fosse pelo incômodo da aplicação, fosse por pura negligência. Os escravos eram os que menos retornavam. Muitos senhores ignoravam a exigência para evitar que eles perdessem o dia de trabalho.
Como consequência do não retorno no oitavo dia, pessoas que acreditavam estar imunizadas acabavam mais tarde sendo pegas pela varíola. Esses contágios inesperados reforçavam a perigosa crença popular de que a vacina não servia para nada ou provocava a própria enfermidade.
Em todo o Império, as epidemias se sucediam. Apenas no Rio de Janeiro, que era a cidade onde a vacina estava mais disponível, as bexigas mataram 7 mil pessoas em toda a década de 1870 — 2,5% da população. Nos anúncios de jornal do tipo “procura-se escravo fugido”, era comum que os senhores apontassem entre as características do fugitivo a presença de cicatrizes de bexigas.
A varíola aparecia com frequência nas falas do trono, os pronunciamentos que o imperador proferia no Senado, no início e no fim de cada ano, nos quais analisava os grandes problemas nacionais. Na fala do trono inaugural de 1868, por exemplo, dom Pedro II disse que a doença estava dificultando o avanço de tropas brasileiras na Guerra do Paraguai:
— Sinto profundamente dizer-vos que a varíola causou à coluna expedicionária da capital da província de Mato Grosso perdas tão consideráveis que a fizeram retroceder, tendo, demais, ceifado naquela cidade e seus arredores grande número de vidas.
Em resposta à resistência da população, dom Pedro II assinou em 1846 um decreto tornando a vacinação obrigatória para todos os súditos. A norma também estabelecia que só poderia ser matriculado nos colégios e admitido no serviço público quem estivesse com a vacinação em dia. Como não eram tantos assim as crianças e adolescentes que estudavam e os adultos que trabalhavam para o governo, o decreto foi solenemente ignorado pela maioria da população.
Por isso, em 1871, o senador Cruz Jobim apresentou um projeto de lei que previa uma multa de 200 mil réis para o chefe de família que deixasse de vacinar seus filhos e escravos. Toda pessoa que morresse de varíola teria o corpo examinado, para saber se havia a marca da vacina. O Rio de Janeiro já tinha uma lei local parecida, que tampouco era executada.
O projeto de lei agradou ao senador Franco de Sá (MA):
— Medida semelhante tem sido ultimamente adotada por governos de nações adiantadas. Além disso, demasiadas nunca serão as cautelas tendentes a conter a propagação do tremendo flagelo da varíola.
Chamado ao Senado para tratar da questão, o primeiro-ministro Marquês de Olinda jogou um balde de água fria no projeto de Cruz Jobim e afirmou aos senadores que seria impossível fechar o cerco e multar aqueles que fugiam da vacinação obrigatória:
— Na Inglaterra, na França e na Alemanha, pode executar-se o rigor, em razão da aproximação da população à roda das autoridades. Assim mesmo, escapam muitos. Mas nós sabemos bem que não é possível executar isso nas nossas capitais e muito menos no interior.
O projeto de 1871 não foi aprovado. A varíola continuaria matando brasileiros por mais um século. Na década de 1960, a Organização Mundial da Saúde (OMS) iniciou uma campanha internacional de erradicação por meio da vacinação em massa. No Brasil, o último caso foi registrado em 1971. Em 1980, a OMS declarou que o mundo estava finalmente livre da doença, e a vacina deixou de ser aplicada. Entre 1900 e 1979, a varíola matou 300 milhões de pessoas em todo o planeta.
Em resposta à resistência da população, dom Pedro II assinou em 1846 um decreto tornando a vacinação obrigatória para todos os súditos. A norma também estabelecia que só poderia ser matriculado nos colégios e admitido no serviço público quem estivesse com a vacinação em dia. Como não eram tantos assim as crianças e adolescentes que estudavam e os adultos que trabalhavam para o governo, o decreto foi solenemente ignorado pela maioria da população.
Por isso, em 1871, o senador Cruz Jobim apresentou um projeto de lei que previa uma multa de 200 mil réis para o chefe de família que deixasse de vacinar seus filhos e escravos. Toda pessoa que morresse de varíola teria o corpo examinado, para saber se havia a marca da vacina. O Rio de Janeiro já tinha uma lei local parecida, que tampouco era executada.
O projeto de lei agradou ao senador Franco de Sá (MA):
— Medida semelhante tem sido ultimamente adotada por governos de nações adiantadas. Além disso, demasiadas nunca serão as cautelas tendentes a conter a propagação do tremendo flagelo da varíola.
Chamado ao Senado para tratar da questão, o primeiro-ministro Marquês de Olinda jogou um balde de água fria no projeto de Cruz Jobim e afirmou aos senadores que seria impossível fechar o cerco e multar aqueles que fugiam da vacinação obrigatória:
— Na Inglaterra, na França e na Alemanha, pode executar-se o rigor, em razão da aproximação da população à roda das autoridades. Assim mesmo, escapam muitos. Mas nós sabemos bem que não é possível executar isso nas nossas capitais e muito menos no interior.
O projeto de 1871 não foi aprovado. A varíola continuaria matando brasileiros por mais um século. Na década de 1960, a Organização Mundial da Saúde (OMS) iniciou uma campanha internacional de erradicação por meio da vacinação em massa. No Brasil, o último caso foi registrado em 1971. Em 1980, a OMS declarou que o mundo estava finalmente livre da doença, e a vacina deixou de ser aplicada. Entre 1900 e 1979, a varíola matou 300 milhões de pessoas em todo o planeta.
O historiador Fillipe dos Santos Portugal faz uma comparação entre as epidemias de varíola no Império e o ressurgimento do sarampo com força total no Brasil de hoje:
— Os dois casos mostram que a negligência do brasileiro em relação às vacinas é histórica. No entanto, na minha avaliação, a situação atual é mais preocupante. No passado, os baixos índices de vacinação eram até compreensíveis, pois de fato faltava conhecimento científico. Hoje, quando a ciência dá explicações bastante convincentes, a negligência se tornou indesculpável.
— Os dois casos mostram que a negligência do brasileiro em relação às vacinas é histórica. No entanto, na minha avaliação, a situação atual é mais preocupante. No passado, os baixos índices de vacinação eram até compreensíveis, pois de fato faltava conhecimento científico. Hoje, quando a ciência dá explicações bastante convincentes, a negligência se tornou indesculpável.
Poder 360
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