Na Rural, três grupos de trabalho foram criados para discutir cada eixo do Future-se. Foto: Tarciso Augusto/Esp.DP.
Primeiro programa do governo Bolsonaro para a educação, o Future-se foi lançado com o objetivo de “fortalecer a autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais”. Duas semanas depois do anúncio oficial, as instituições que serão diretamente afetadas pelo programa ainda analisam a proposta. Em Pernambuco, nenhuma instituição confirma se vai aderir ou não. Reitores criticam a falta de participação na concepção do projeto e especialistas enfatizam que a produção científica só pode ser mantida com mais investimento público. Segundo eles, é preciso garantir a constitucionalidade, uma vez que o artigo 207 da Constituição Federal assegura “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” às universidades.
Uma consulta pública sobre o assunto, dividida em duas etapas, está aberta até o próximo dia 15 pela internet. Na primeira fase, o participante pode escolher três opções a cada capítulo: “totalmente claro”, “claro com ressalvas” e “não está claro”. Há espaço para incluir comentários por escrito no fim de cada capítulo. Na segunda etapa, o participante pode ainda utilizar um campo de texto para fazer comentários gerais sobre o tema e enviar propostas.
De acordo com o Ministério da Educação (MEC), o fundo do Future-se, chamado de Fundo Soberano do Conhecimento, será de direito privado e “ampliará o financiamento para as atividades de pesquisa, extensão e desenvolvimento, empreendedorismo e inovação. A ad- ministração do fundo é de responsabilidade de uma instituição financeira privada e funcionará sob o regime de cotas”. Na prática, o MEC pretende estimular a busca de fontes de financiamento, com o patrocínio de pesquisas, gestão de imóveis, registro de patentes, cessão de campi, criação de ranking das instituições com prêmio para as mais eficientes nos gastos e internacionalização de profissionais.
Ainda segundo o MEC, os contratos de gestão poderão ser celebrados com organizações sociais (OS) já qualificadas pela pasta ou por outros ministérios, sem a necessidade de chamamento público, desde que o escopo do trabalho esteja no âmbito do contrato de gestão já existente. “Admite-se a possibilidade de realização de um novo processo de qualificação das organizações sociais, para seleção daquelas que irão participar do programa”, informou o MEC. O órgão ressaltou que “o governo federal continuará a ter um orçamento anual destinado para as instituições”. Atualmente, de acordo com a Lei Orçamentária Anual de 2019, foram destinados R$ 122,9 bilhões para o Ministério da Educação neste ano. O custo de cada uma das 68 universidades federais é previsto em R$ 729,7 milhões, em média.
As universidades federais em Pernambuco criaram grupos de trabalho para analisar a proposta. O Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) externou preocupação com o anúncio do Future-se, que aconteceu no último dia 17. “Abstraindo seu mérito, a raiz conceptiva da proposta já traz um notório problema de método, que está expresso na inteira exclusão dos agentes públicos, dos corpos dirigentes e das representações coletivas institucionais do debate relativo à sua construção, em razão do que a notícia provocou espanto e surpresa em toda rede”, ressaltou, em nota.
“A proposta ainda é incipiente e enseja diversas dúvidas, que precisam ser esclarecidas, e também depende de atos posteriores de regulamentação, o que sugere traços de indefinições e imprecisões. Além do que, note-se a superficialidade com que são tratados conceitos cruciais, como a autonomia da gestão institucional, aduzida no texto preliminar de forma difusa e ambígua, sombreada por organizações sociais e fundos de investimento, elementos estranhos ao nosso universo”, completou o conselho nacional que representa os institutos federais, incluindo Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) e o Instituto Federal do Sertão Pernambucano (IF Sertão-PE).
Instituições querem ampliar o debate
Diante da complexidade do Future-se, as universidades Federal de Pernambuco (UFPE), Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Federal do Vale do São Francisco (Univasf ) estão analisando todos os eixos apresentados pelo MEC. As comunidades acadêmicas devem ser ouvidas e participarão do processo.
De acordo com o ministério, as universidades não são obrigadas a participar do programa. Quem ficar de fora, entretanto, terá o financiamento limitado ao teto de gastos públicos. Para o MEC, “na prática, elas deixarão de participar de um projeto que fortalecerá sua autonomia financeira e permitirá o aumento da captação de receitas próprias”. O governo federal não divulgou ainda um plano de transição para as universidades que aderirem. Essa questão deve ser detalhada após o término da consulta pública, aberta até o dia 15.
O reitor da UFPE, Anísio Brasileiro, afirmou que o Future-se é bem-vindo do ponto de vista da possibilidade de discussão sobre o futuro das universidades, criação de parcerias com a sociedade e elementos voltados à inovação. “É importante abrir essa discussão, mas o tempo ainda é muito curto para aprofundar o que o programa propõe porque ele altera o modelo de gestão das universidades. São assuntos muito complexos, por isso precisamos de tempo para analisar, até porque os reitores não participaram dessa construção”, informou.
Para ele, apesar da disposição ao debate, algumas premissas são inegociáveis, como a manutenção da autonomia. “A gratuidade na graduação e na pós-graduação stricto sensu também é inegociável. Outra questão é que, para discutir, precisamos ter os orçamentos desbloqueados. A UFPE tem hoje mais de R$ 50 milhões contingenciados. Em todo o mundo, a verba pública é base de pesquisa e inovação. Não podem querer substituir os recursos públicos. Vamos iniciar uma discussão no nosso Conselho Universitário para manter as conquistas da UFPE.”
Na Rural, três grupos de trabalho foram criados para discutir cada eixo do Future-se. “O programa vem com uma proposta de reestruturação praticamente total da universidade. Pelo pouco tempo, não temos posição formada. Nos textos que nos foram passados, onde temos o esboço do programa e a minuta do projeto de lei, ainda não há subsídios que esclareçam como será. Convocamos uma reunião aberta com técnicos, estudantes e conselho, e apresentamos o que tínhamos do programa”, disse a reitora Maria José de Sena.
Em 10 dias, os grupos devem voltar a se reunir para discutir os eixos Governança, Gestão e Empreendedorismo; Pesquisa e Inovação; e Internacionalização. “O programa é um tema que vamos discutir por muito tempo. Somos uma universidade pública e temos princípios que norteiam a educação publica. Não podemos abrir mão desses princípios, pois, se assim fizermos, estaríamos vulnerabilizando a estrutura, a visão e a missão da instituição.”
Para o reitor da Univasf, Julianeli Tolentini, o Future-se é “um programa abrangente, inspirado em modelos de universidades privadas e que certamente demandará do MEC ajustes à nossa realidade e especificidades, especialmente em função do papel da universidade pública em nosso país”. Segundo ele, o debate com a equipe administrativa da Univasf foi iniciada.
A universidade formará grupos de trabalho com especialistas, docentes e técnicos. Os resultados da análise serão registrados em documento a ser apresentado à comunidade acadêmica e submetido às contribuições do Conselho Universitário. “Concluída esta etapa, faremos o encaminhamento desse documento à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), entidade que representa o conjunto das instituições federais de ensino superior junto ao MEC”, disse Tolentini.
Em carta aberta elaborada durante reunião realizada em Vitória (ES) nos dias 25 e 26 de julho, a Andifes enfatizou que quer ampla discussão sobre o Future-se. “Todo debate sobre orçamento deve ter em conta metas pactuadas pela sociedade, tal como expressas no Plano Nacional de Educação, no caso, em especial, a Meta 12, que é a da expansão, com qualidade, da educação superior em nível de graduação, tendo entre seus objetivos a garantia de aumento expressivo das matrículas no ensino público”, pontuou a associação. “O programa exige a modificação explícita de 16 leis vigentes, contrariando ainda normativas dos órgãos de controle sobre trânsito de recursos privados e recursos públicos", diz a carta.
Na contramão do mundo
Símbolo de qualidade da produção científica no mundo e terceiro lugar entre as nações ganhadoras de prêmios Nobel, a Alemanha divulgou, em maio, um investimento de 160 bilhões de euros para universidades e pesquisas. O valor representa um aumento médio anual de 2 bilhões de euros nos investimentos em ensino superior e centros de pequisa no período de 2021 a 2030. “Estamos garantindo a prosperidade de nosso país”, disse a ministra da Educação, Anja Karliczek. No mesmo mês, as universidades brasileiras estavam com contas bloqueadas. Em Pernambuco, UFPE, UFRPE e Univasf tiveram R$ 83,8 milhões contingenciados.
Na avaliação de reitores das universidades e especialistas em educação, não é natural pensar em novos modelos de financiamento quando as instituições estão com o funcionamento ameaçado por falta de recursos. “A verba pública é indispensável para as pesquisas”, salientou o diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, principal entre poucos órgãos privados de fomento à ciência no Brasil, Hugo Aguilaniu.
Na avaliação de Aguilaniu, ainda é cedo para comentar o Future-se. “Há, na proposta, coisas interessantes e outras menos interessantes. A ideia de dar um certo nível de autonomia financeira é algo que acontece no mundo inteiro. Se bem implementada, pode ser legal. Por outro lado, há o risco de deixar de lado atores menores que não chegam a ser competitivos o suficiente. Muitas vezes, universidades menores acabam desaparecendo. Em países europeus, o risco nesse sentido é menor porque o tecido universitário é mais uniforme. No Brasil, a realidade é que uma universidade do Norte e Nordeste não tem o mesmo peso de uma do Sudeste. Pelo tamanho e história universitária, o país precisa pensar essa questão de uma maneira mais cuidadosa”, afirmou.
Outra questão que, para o diretor-presidente do Serrapilheira, deve ser observada com cuidado é que não se deve exigir que pesquisas sejam necessariamente atividades lucrativas. “Não só o financiamento público tem que ser o coração da ciência, como ele tem um papel específico. Se pensarmos em saúde, educação, pesquisa, há atividades que não são lucrativas. Essas, nenhuma empresa privada vai financiar. O governo não tem a meta de lucrar. O objetivo é que a sociedade avance. A ciência vai ajudar a economia, vai produzir riquezas, mas os primeiros passos são muito tímidos. A atividade de pesquisa básica não pode ter como objetivo lucrar. Caso contrário, não funciona. Pesquisador precisa ter liberdade para pensar. Isso só o governo pode financiar", defendeu.
Há décadas, o professor sênior do Instituto de Física e ex-presidente da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (USP), Otaviano Helene, acompanha políticas universitárias pelo mundo. Em entrevista ao Diario, ele avalia o Future-se e destaca a importância das pesquisas para a sociedade e economia.
Como o senhor avalia as possíveis consequências do Future-se?
Quando a gente quer dimensionar a educação de um país, temos que avaliar o que outros países fizeram em situações semelhantes. Essa proposta vai na contramão de tudo o que foi feito no mundo. Um ponto central é que a educação é majoritariamente pública. Nessa proposta é feito o contrário, ou seja, a ideia é abrir mais caminho para o privado. Atualmente, 75% dos estudantes brasileiros estão em instituição privada. No exterior, por outro lado, a grande maioria frequenta instituições públicas. Então, o que o governo brasileiro devia fazer era o contrário do que está propondo, isto é, tornar o ensino superior mais público.
Permitir que empresas coloquem o nome em salas, prédios e campi de universidades em troca de verba para a instituição é uma das estratégias do Future-se. Isso é comum nos Estados Unidos, país frequentemente citado como exemplo pelo governo.
Não dá para copiar sem fundamento outros países. Os Estados Unidos são um dos países mais ricos do mundo, ou seja, há uma diferença total de contexto. Não pode, portanto, ser um espelho para o Brasil se basear. Até porque não dá para se basear na exceção. Quando tinham problemas similares ao do Brasil, os países investiram mais e não menos em educação.Além disso, a maioria dos estudantes dos EUA está em instituições públicas. As privadas, muito conhecidas, são muito pequenas numericamente. Harvard tem 22 mil alunos, enquanto a USP tem 98 mil e UFPE 31 mil. Elas têm como finalidade reproduzir grupos politicamente e economicamente poderosos. Quem forma a massa científica é a universidade pública. Não dá para usar como referência as universidades privadas pequenas dos EUA.
Que exemplo devemos seguir?
Meio século atrás, países europeus tinham um padrão parecido com o atual do Brasil. O que eles fizeram foi investir mais em educação pública, de qualidade e gratuita. Em todo o mundo, a maioria das pesquisas é feita na universidade pública. Esse é o caminho. As pessoas precisam entender que o que é estudado tem impacto direto nas vidas delas e na produção econômica do país. Um exemplo é a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e o desenvolvimento da soja (hoje, o Brasil é o segundo maior produtor mundial de soja, atrás apenas dos EUA). Outro caso é o da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), que decifrou o problema do vírus zika. Isto é, institutos de pesquisa, que flutuam em torno das universidades, dão retorno financeiro. Por que não investir mais nisso? O caminho não é desmontar, mas investir. Colheremos bons frutos se fizermos esse investimento.
Por Diário de Pernambuco
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são publicados somente depois de avaliados por moderador. Aguarde publicação. Agradecemos a sua opinião.