O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse ontem que a divulgação do memorando da CIA, que acusa Geisel de ter endossado a execução de presos políticos, não afeta o “prestígio” das Forças Armadas. Ex-ministro da Defesa, Jungmann afirmou ainda que o governo não teve acesso ao documento de forma oficial, mas garantiu que alguma medida deve ser tomada. “O prestígio das Forças Armadas permanece no mesmo nível. As Forças Armadas são um ativo democrático, isso não é tocado por uma reportagem”, minimizou, em coletiva de imprensa.
O advogado e coordenador da CNV, Pedro Dallari, afirmou que o documento é “estarrecedor” e reforça o posicionamento da comissão de que as Forças Armadas devem reconhecer a responsabilidade institucional pelas execuções. “É um documento estarrecedor, sem dúvida nenhuma, porque descreve com minúcia uma conversa que evidencia práticas abjetas e que um presidente da República com sua equipe tratou do extermínio de seres humanos”, disse Dallari ao portal G1.
Em nota, o Ministério Público Federal (MPF) disse que o documento do governo americano revela “nova evidência de que a repressão política pela ditadura militar incluiu uma política de extermínio de opositores do regime” e defende que a revelação trazida pelo memorando convida para uma resposta breve do Estado brasileiro em favor da promoção da Justiça, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria abrir o diálogo sobre a decisão que validou a Lei de Anistia à luz do direito internacional. A reportagem procurou a Agência Brasileira de Inteligência, Exército Brasileiro e o Superior Tribunal Militar. Contudo, não houve resposta.
“A verdade apareceu”
A jornalista Hildegard Angel fez um depoimento emocionado ao jornal Correio Braziliense em que acusou Geisel de ser responsável pela morte da mãe dela, em 1976. “Recentemente, um delegado contou com detalhes essa história na Comissão da Verdade. Foi a terceira vez que reconfirmaram a ordem para matar Zuzu Angel. Aquilo foi um ‘cala-boca’ que deram nela. Esse homem respondia diretamente ao gabinete de Geisel.”
Zuzu era mãe de Stuart Angel, um estudante que desapareceu e foi declarado morto em 1971. Ele teria sido torturado e assassinado pelos militares, segundo documentos da época. O motivo do atentado contra Zuzu teria sido justamente esse. “Ela procurou o corpo do meu irmão durante anos. Descobriu muito em uma época difícil. Os anos eram negros, tudo era um mistério e quem tinha informação tinha tudo. Ela incomodou e pagou o preço”, concluiu a jornalista. A morte de Zuzu e do jornalista Vladmir Herzog estão entre as mais emblemáticas que ocorreram durante a gestão do general.
Para Georgete Medleg Rodrigues, historiadora, professora de arquivologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora sobre o acesso a documentos da ditadura militar, o documento só revelou o que já era suspeito pelos estudiosos. Ela afirma ainda que a surpresa acerca do documento se dá porque houve um erro de interpretação a respeito da gestão de Geisel no país. “Ele era um ditador, mas com o objetivo de dar uma abertura lenta, segura e gradual ao Brasil. Queria menos violência por parte dos militares, mas só para os opositores liberais, ou seja, aqueles que não fossem comunistas”, acrescentou.
Já o historiador Rodrigo Motta avalia que a disponibilização do documento não surpreende, mas veio em um bom momento. “Muitas pessoas têm apoiado a volta do regime militar, porque acham que foi ótimo para o Brasil. Elas acreditam que a ditadura não foi tão violenta assim. Mas, à época, o Exército escolhia quem viveria e quem morreria. É preciso entender o quão importante é viver em democracia”, completou.
Tornado público na quinta-feira, o documento do governo dos EUA revelou uma conversa entre Geisel e generais que estavam à frente do Centro de Inteligência do Exército (CIE) e do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) do país. Queriam discutir sobre como tratariam os opositores políticos ao regime. Geisel havia recém-assumido o cargo de presidente da República, em 30 de março de 1974, quando ele, o general Milton Tavares de Souza, o general Confúcio Danton de Paula Avelino — respectivamente os chefes do CIE — e o general João Baptista Figueiredo, do SNI, se reuniram para traçar estratégias de trabalho para conter a “ameaça subversiva e terrorista”.
Segundo o memorando norte-americano, Tavares ressaltou que “métodos extralegais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”. Figueiredo teria apoiado a conduta e insistido para dar continuidade ao processo. Já Geisel teria afirmado que precisaria de um tempo para refletir sobre o assunto e chegar a uma decisão. Mas, em 1º de abril, o ex-presidente teria determinado que a política de execuções continuasse. No entanto, “com muito cuidado”.
Quem é quem
» Geisel
Ernesto Beckmann Geisel foi um ditador militar que esteve à frente do Estado brasileiro entre 1974 e 1979. Documentos revelados pela Central Intelligence Agency (CIA, a central de inteligência dos Estados Unidos), mostram que ele autorizou a execução de inimigos no período em que esteve no poder.
» Figueiredo
João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Inteligência do Exército à época do regime Geisel, teria apoiado a conduta de execução de presos políticos. Foi o último presidente, de 1979 a 1985, da ditadura militar no Brasil.
» Avelino
Confúcio Danton de Paula Avelino foi o chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE) durante o governo de Ernesto Geisel.
O general de brigada era quem informava o ditador sobre acontecimentos que demandavam mais cuidado, como as execuções dos inimigos políticos do “governo”.
» Milton
Milton Tavares de Souza era o chefe do Centro de Inteligência do Exército de Emílio Garrastazu Médici, que comandou o Brasil antes de Geisel. Ele conduziu a maior parte da conversa revelada pela CIA que mostrou a dinâmica dos assassinatos de opositores à ditadura militar no país à época em que era o homem forte do regime.
Uma linha “moderada”
O general Ernesto Geisel assumiu o poder indiretamente em março de 1974. O governo do militar era conhecido por pertencer à uma linha “moderada” das Forças Armadas — pregava que o regime autoritário seria transitório para restaurar a democracia no país.
Apesar do intuito de diminuir a repressão contra opositores, o governo de Geisel acabou marcado pela morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975. Ele foi encontrado enforcado e, à época, os militares afirmaram ter ocorrido um suicídio. Foi durante o regime do general que houve a transição para a democracia, que ele mesmo teria designado como “lenta, gradual e segura”.
Durante a gestão do militar, algumas prerrogativas dos Atos Institucionais — decretos emitidos durante o regime — expiraram, como o caso da cassação aos direitos políticos de algumas personalidades pelo AI-1, e outras foram suplantadas, como a proibição à propaganda política pelo AI-5.
No fim do governo Geisel, em 1978, foi anulado a AI-5, dando início, oficialmente, à abertura do regime militar. Em 15 de março de 1979, o general deixou a Presidência da República, sucedido pelo general João Figueiredo. Agora, com a divulgação dos documentos do governo norte-americano, o capítulo sobre gestão de Geisel, durante a ditadura militar no Brasil, poderá ser reescrito.
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