“Tendo por berço o lago cristalino, folga o peixe, a nadar todo inocente, medo ou receio do porvir não sente, pois vive incauto do fatal destino […]”, o trecho do poema O Peixe, uma crônica social e política contemporânea, como toda a obra do mestre Patativa do Assaré, é a narrativa que mais se assemelha a trágica situação da lagoa de Itaparica, a maior da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, situada entre as cidades de Xique-Xique e Gentio do Ouro, no semiárido baiano.
Com 24 km de extensão, cercada por carnaubais e outras árvores nativas da Caatinga, a lagoa de Itaparica é considerada a mais importante das margens do rio por ser o seu maior berçário natural. Os alevinos que nascem ali voltam para o rio quando crescem, tornando esse ciclo de fundamental importância para reposição do estoque pesqueiro de toda a bacia do São Francisco. Entretanto, a falta de chuvas, a baixa vazão do rio e o assoreamento provocado pela derrubada de mata nativa levaram a lagoa de Itaparica a secar em sua totalidade.
A paisagem paradisíaca formada pelo espelho d’água deu lugar a um deserto de chão rachado coberto por peixes mortos. O cheiro de putrefação impregna o ar atraindo urubus, carcarás e outras aves de rapina. Os pequenos poços de lama são disputados por suínos, cabras, jumentos e vacas que tentam, desesperadamente, mitigar sua sede ou abrandarem o calor escaldante. A convivência harmoniosamente desesperadora dessas espécies fica evidente na grande quantidade de carcaças de novilhas, leitões e jegues encontradas no local, enquanto os urubus esperam pacientemente ao lado dos mais enfermos o momento em que esses não possam mais reagir.
A seca impacta também diretamente a população ribeirinha, chegando a afetar cerca de 5 mil famílias. Nascido e residente às margens da lagoa, o senhor Francisco Luís dos Santos, de 59 anos, afirma que “sem a lagoa não temos o peixe pra comer e nem onde nossos animais beberem. Com essa seca desse jeito todos sofrem. Todo mundo que chega aqui fica besta de ver esse tanto de peixe que morreu aí”, lamenta.
Segundo especialistas, a tragédia já era esperada e o problema muito maior é a morte hídrica da lagoa. Em visita ao local, Vanderlei Pinheiro, engenheiro de pesca e analista ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que trabalha as margens do Médio e Submédio São Francisco há 39 anos, explica que o processo de desertificação não pode ser creditado apenas à falta de chuvas. Segundo ele, “Os recursos naturais em volta da lagoa estão sendo extraídos de forma degradante, o carnaubal sofre com incêndios e extração das folhas, retiram areia dos leitos das nascentes, desmatam as serras e encostas e tudo isso faz com que a lagoa fique assoreada pelos detritos que não encontram barramento natural, numa região onde a média de chuvas é de 600 milímetros e a evapotranspiração é de 2.400, chove de baixo para cima. Não existe fato isolado na natureza, não adianta se falar de revitalização da lagoa se não revitalizar as nascentes e as micro bacias”.
No intuito de minimizar os transtornos e danos, o poder público municipal se movimenta através de ações emergenciais e paliativas para atender a demanda da população do entorno da lagoa. De acordo com o secretário do Meio Ambiente de Xique-Xique, Roberto Rivelino, a atuação nesse momento é no sentido de manter a subsistência da vida animal e garantir água para consumo humano. “Nós abrimos cerca de oito bolsões de água dentro da lagoa para que os animais possam matar a sede e não morram. As comunidades são abastecidas por poços para que não falte água para beber, cozinhar e atender as necessidades básicas de todos enquanto as chuvas não voltam para reabastecer a lagoa e seu entorno”, ponderou o secretário.
Diante deste cenário caótico, onde a mortandade de peixes exóticos e nativos atinge números assustadores, cerca de cinquenta milhões segundo cálculos prévios do IBAMA, a lagoa de Itaparica se tornou assunto nacional por meio da imprensa através do vídeo feito pelo professor de geografia e ambientalista Railton Barbosa.
Para Railton, nascido na comunidade de Umari, que fica as margens da lagoa, o processo de seca não é algo totalmente novo. “Nos meus 32 anos de vida eu nunca havia visto a lagoa seca, a primeira vez foi em 2015 e agora novamente em 2017. Nunca na história a lagoa secou num período tão curto. Todos nós temos que assumir a responsabilidade e ter a consciência ambiental de que o que se perde aqui pode nunca mais ser recuperado. Os órgãos competentes, as entidades, a sociedade civil e as comunidades que dependem da lagoa devem criar mecanismos para tornar a lagoa perene e a extração de seus recursos sustentáveis”, afirmou.
Acompanhando de perto a situação da lagoa de Itaparica, o coordenador da Câmara Consultiva Regional do Médio São Francisco, Ednaldo Campos, afirma que as ações de fiscalização devem ser intensificadas para que a situação não se agrave ainda mais. “O canal da lagoa por onde passa a água do rio está totalmente assoreado devido a ação degradante de retirada da mata nativa e plantação de capim para criação de boi e porco. Ao invés de água, o que temos mais visto é plantação de capim, uma situação que não vem sendo coibida pelos órgãos de fiscalização”, comentou Campos.
Na comunidade de Lagoa dos Gomes, onde residem 40 famílias que se beneficiavam diretamente dos recursos da lagoa, que já foi conhecida como “mãe da pobreza”, os efeitos do flagelo são mais duramente sentidos pelos moradores. Dona Amarilda Campos dos Santos, residente há 33 anos na comunidade, se emociona ao falar da situação: “a lagoa é uma mãe. Quando a gente olha para ela só vê água, mas com ela seca assim dá uma tristeza de ver tantos peixes mortos e os animais de um lado para o outro procurando onde beber. A situação é muito difícil para todo mundo que vive dessa lagoa”.
SOS Lagoa de Itaparica
Em busca de soluções viáveis para a situação, a Câmara Consultiva Regional do Médio São Francisco (CCR Médio) em conjunto com o Núcleo de Defesa do Rio São Francisco (NUSF) e o Ministério Público Estadual, convocaram uma reunião emergencial que ocorreu no dia 31 de agosto no campus da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) do município de Xique-Xique. O encontro contou com a presença do coordenador da CCR Médio, Ednaldo Campos, da promotora de Justiça, Luciana Khoury, dos prefeitos de Xique-Xique, Reinaldo Braga Filho, e Gentio do Ouro, Robério Cunha, além de representantes do Ibama, Inema, Adab, Codevasf, UNEB e da sociedade civil.
A plenária definiu um plano de ação denominado “SOS Lagoa de Itaparica”, composto por dez itens que preveem a elaboração de um projeto de monitoramento das lagoas marginais da região, fiscalização de ações impactantes na lagoa, mapeamento dos impactos causados à população do entorno e a criação de uma comissão permanente para acompanhar o andamento do plano emergencial, além de definir as responsabilidades de cada ente participante na resolução do problema.
Reunião emergencial realizada no dia 31 de agosto, em Xique-Xique
Tópicos do plano de ação SOS Lagoa de Itaparica
- Mapeamento dos impactos às populações do entorno da lagoa (Responsável: Prefeitura de Xique-Xique);
- Elaboração de projeto de dragagem do canal do Guaxinim e elaboração de estudo para desobstrução do canal de Itaparica (Responsável: Codevasf (a companhia irá terminar estudo de terraplenagem para conclusão e implementação);
- Trabalho de educação ambiental para as populações do entorno da lagoa e para a população em geral (Responsáveis: secretários de Meio Ambiente e Educação de Xique-Xique e Gentio do Ouro e colaboradores da sociedade civil);
- Diagnóstico socioambiental da lagoa de Itaparica (Responsável: CBHSF);
- Plano de fiscalização de ações impactantes na lagoa (Responsáveis: MP-BA, secretaria estadual de Meio Ambiente (Sema), Inema, Ibama, municípios de Gentio do Ouro e Xique-Xique);
- Projeto de monitoramento das lagoas marginais da região (Responsáveis: prefeituras, Uneb e apoio do CBHSF);
- Implementação de ações de implantação da APA Lagoa de Itaparica e estudo para identificar possível mudança da Unidade de Conservação para uma Resex (Responsável: gestor da APA, Sema e MP-BA);
- Retirada dos porcos que estão na lagoa; notificações após orientação dos moradores (Responsáveis: MP-BA e Prefeitura);
- Adotar medidas para coibir lançamento de esgoto sem tratamento (Responsável: MP-BA e órgão ambiental);
- Criação de comissão permanente para acompanhar o andamento do plano com participação de sociedade civil, municípios, Codevasf, APA, MP-BA e outros.
Fotos: Higor Soares
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