A entrevista é de Lígia Formenti, publicada por O Estado de S. Paulo, 29-03-2017.
Sem a etapa realizada no prazo correto, contou, o trabalho de anos poderia ir por água abaixo. O problema imediato foi contornado, mas o risco persiste. "Nossas coortes (grupos de pessoas acompanhadas desde o nascimento) estão ameaçadas."
Professor da Universidade Federal de Pelotas, Victora ressaltou a necessidade de não se culpar a mulher por eventuais problemas na alimentação ou amamentação e criticou a estratégia defendida pelo ministro Ricardo Barros para se reduzir a obesidade infantil, de se ensinar nas escolas crianças a descascar alimentos. "É muito mais importante taxar os alimentos ruins e proibir a propaganda do que ensinar uma criança a descascar uma maçã."
Eis a entrevista.
Ao iniciar o estudo sobre amamentação exclusiva, o senhor imaginava obter esse resultado?
Não, foi uma surpresa. Todos sabiam da importância do aleitamento. Mas até então ninguém tinha se dado conta de que a oferta de água e dos chás, na época nas famosas "chuquinhas", fosse prejudicial. Pelo contrário, acreditava-se que só leite materno não supriria toda a necessidade de líquidos. Vimos que o risco aumentava de forma muito expressiva a cada chuquinha ofertada.
O resultado foi uniforme entre todas as classes sociais?
Não. Avaliamos todas as mortes por diarreia ocorridas em Pelotas e Porto Alegre durante um período. Ao todo, foram 170, a maioria em população pobre, que vivia em favelas. Naquela época era mais fácil entrar em favela. Não sei se hoje conseguiria fazer o estudo, por causa da violência.
Mas a recomendação foi para a população em geral
Esse efeito é tão importante que mesmo países ricos, Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, passaram a recomendar essa estratégia. Isso porque, além do risco de diarreia e de infecção, a oferta de líquidos diminui a produção de leite e a amamentação fica mais curta.
A amamentação brasileira já está em níveis adequados?
Os números que dispomos são antigos. A última pesquisa nacional foi em 2007. É preciso fazer uma nova pesquisa nacional. Mas sabemos que mais ou menos metade das crianças brasileiras tem aleitamento exclusivo até os seis meses. É o tal copo meio cheio, meio vazio. Quando comecei a estudar o assunto, nos anos 80, esse indicador era zero. Estamos indo na direção certa.
Está havendo demora em se elevar esses indicadores?
Sim. Mas essas coisas são complicadas de se aumentar. A amamentação depende muito da sociedade apoiar a mulher. Em uma série publicada na revista Lancet sobre amamentação usamos o Brasil como um exemplo positivo. O País investiu muito em amamentação. A licença-maternidade paga é grande comparada com outros países, há uma série de políticas de proteção da amamentação, como o controle dos substitutos de leite materno, a rede de banco de leite.
As taxas de cesárea no Brasil continuam altas. Isso pode afetar a amamentação?
É muito importante que a amamentação comece logo na primeira hora depois do nascimento. Estudos recentes indicam que essa prática pode provocar uma série de efeitos epigenéticos, que é a modulação de genes, e efeito sobre o microbioma, o efeito que a bactéria terá sobre o intestino da criança. A cesárea atrapalha esse processo. Não que seja impossível colocar uma criança imediatamente no seio da mãe praticamente durante a cesárea, enquanto a equipe se ocupa em fechar a barriga da mãe, a criança estar agarrada no peito. Mas é difícil. Vemos isso com preocupação. Afinal, 60% dos nascimentos no País são por cesárea.
O senhor enfrentou dificuldade de financiamento para suas pesquisas?
No começo era difícil porque ninguém nos conhecia. Depois, fomos ficando conhecidos e conseguimos muitos financiamentos, principalmente internacionais. Atualmente, no entanto, estamos numa crise, porque a ciência brasileira está em crise. Temos um financiamento grande nacional. Mas o dinheiro não chega.
O dinheiro está bloqueado?
O dinheiro é anunciado, você ganha o projeto mas os órgãos federais não liberam porque não têm caixa. Financiamentos que recebemos em 2014 estão sendo liberados agora. O financiamento muito grande para manter nossas coortes (populações acompanhadas ao longo dos anos) está trancado. Isso é muito ruim, porque o acompanhamento de coortes não pode esperar. Isso não é uma pesquisa numa cobaia, que você pode fazer hoje ou amanhã. Essas pessoas são acompanhadas desde o nascimento. Periodicamente, você as visita. Se isso não é feito no período certo, você perde o dado essencial sobre o desenvolvimento e a saúde dessa pessoa. A comunidade científica brasileira está muito preocupada com essa questão de redução nas verbas na área de pesquisa.
Como os senhores estão fazendo para driblar a falta de recursos?
Nós últimos dois, três governos a ciência teve um bom financiamento, mas agora... No passado, buscávamos recursos de fontes internacionais. Agora retornamos a essa estratégia. Mas isso não é algo que ocorre da noite para o dia. Um financiamento demora certo tempo. Até fazer o projeto, até receber a aprovação.. A curto prazo, nossas coortes estão ameaçadas porque contávamos como certo o dinheiro do governo federal que não chegou. Por enquanto, estamos conseguindo apertar o orçamento, pegar um pouco de dinheiro daqui, um pouco de dinheiro dali. A Pastoral da Criança, por exemplo, agora nos ajudou a financiar a visita de 2 anos de acompanhamento de bebês que nasceram em 2015.
E a situação dos novos pesquisadores?
Estou muito preocupado porque os pesquisadores jovens estão indo para o exterior. Esse ano mesmo três integrantes super capacitados do meu grupo foram para a Inglaterra. Eles são atraídos por outras universidades onde eles têm oportunidade de fazer pesquisa. São pesquisadores jovens, que o Brasil investiu na formação. É muito triste esta situação. Os melhores estão indo.
O senhor vê perspectiva de melhora?
Com todas essas limitações orçamentárias que estão ocorrendo, o teto dos gastos públicos... acho difícil. A pesquisa vai se tornando mais complexa, mais tecnológica, exige máquinas mais complexas, exames mais complexos. Isso tudo custa dinheiro.
Qual a importância do trabalho que o senhor conduziu sobre amamentação exclusiva e sobre os mil dias para a saúde?
Os dois trabalhos influenciaram políticas globais. A partir de 1991, a ONU passou a recomendar o aleitamento exclusivo. O meu trabalho foi o primeiro, mas depois outros confirmaram o mesmo. Nenhuma política mundial muda por causa de uma única pesquisa. Depois do nosso trabalho, publicado em 1987, a pesquisa da amamentação foi replicada no Peru e nas Filipinas. O mesmo aconteceu com a recomendação dos mil dias, outros estudos foram feitos. Várias agências internacionais ressaltam a necessidade de garantir uma nutrição adequada para a gestante e para o bebê, nos dois primeiros anos de vida. Se as ações de nutrição são feitas quando a criança atinge os 4, 5 anos, o efeito é muito menor. É aquele ditado "é de menino que se torce o pepino."
Qual deve ser o foco nos primeiros mil dias?
Para começar, um pré-natal de qualidade, para conseguir a nutrição da mulher, quando necessário, com suplementação com vitaminas.
Quais os benefícios?
Uma criança subnutrida é pequena. Mas não é apenas estatura. Seu cérebro é pequeno, seu rim é pequeno, seu pâncreas, fígado. Com isso, ela tem risco maior de ter diabete, de ter doenças cardiovasculares e assim por diante. As pesquisas mostram que uma boa nutrição do bebê ainda dentro do útero e dos dois anos tem um impacto até mesmo na epidemia de diabete que vivemos aqui.
Por que a criança desnutrida tem maior chance de ter diabete?
A capacidade de produzir insulina depende do número de células que você tem nos órgãos encarregados do metabolismo. Uma criança desnutrida tem maior propensão a apresentar órgãos com dificuldade para desempenhar essa atividade. Essas crianças, desnutridas na infância, quando chegam à adolescência e idade adulta são expostas a uma dieta rica em gorduras e calorias. A dificuldade em metabolizar aumenta o risco para diabete, aterosclerose e doenças cardiovasculares. Uma deficiência que surgiu lá nos primeiros mil dias se une a outro problema dos dias atuais.
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, associou a obesidade infantil ao fato de ela não aprender "com as mães" em casa a descascar alimentos in natura.
É preciso ter muito cuidado e não culpar a mulher. A questão da alimentação infantil, assim como a questão da amamentação é uma questão da sociedade. Se a mulher trabalha fora, não tem creche, se ela tem uma licença maternidade curta, se ela é uma trabalhadora informal nem licença maternidade ela tem, claro que isso vai afetar a amamentação. Isso não é culpa da mulher.
E a obesidade?
A saída está no controle da propaganda de alimentos e na taxação de alimentos não saudáveis. O México criou uma taxa extra em refrigerantes. Pelo lobby da indústria alimentícia, nosso governo tem sido muito tímido nessa área. Nosso legislativo tem sido contrário a taxar esses alimentos não saudáveis. Para mim é muito mais importante taxar os alimentos ruins e proibir a propaganda do que ensinar uma criança a descascar uma maçã.
Fonte: IHU Online/Adital
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