domingo, fevereiro 19, 2017

Paradas, obras da ferrovia Transnordestina são retrato do descaso


O descaso se encontra no município de Salgueiro, no sertão de Pernambuco. É ali, não muito longe do centro da cidade, que duas obras bilionárias, anunciadas como promessas de um desenvolvimento que ainda não veio, se entrelaçam. Os trilhos da ferrovia Transnordestina passam por sobre o canal da transposição do Rio São Francisco. Uma obra para integrar e fortalecer a economia do Nordeste. A outra, para vencer a seca. As duas orçadas em mais de R$ 20 bilhões. Ambas paradas.

No caso da Transnordestina, o problema é mais grave. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), o contrato atual da obra previa que a ferrovia deveria ter sido concluída no fim de janeiro. Em uma década, no entanto, apenas 600 quilômetros de trilhos foram colocados de 1.753 da extensão total.

No restante do trajeto, que atravessa 35 municípios em Pernambuco, 28 no Ceará e 18 no Piauí, não há nenhum sinal de trabalho em andamento. Foi o que atestou a reportagem do G1, após um giro de mais de 3 mil quilômetros pelos três estados que durou 10 dias.


O ponto de partida é a cidade de Salgueiro, cuja posição estratégica, equidistante de várias capitais do Nordeste, a transformou em epicentro da Transnordestina. É por isso que o município abriga o canteiro industrial da obra. O terreno de 46 hectares tem fábrica de dormentes, pedreira, central de britagem, estaleiro de solda e oficina de manutenção. Tudo parado. Um cenário que persiste pelo menos desde abril do último ano.

Uma imagem aérea do canteiro industrial dá a dimensão do abandono e revela o trecho exato em que Transnordestina e transposição se cruzam. De um lado, correm os trilhos com cinco locomotivas estacionadas. Um espantalho faz as vezes de segurança no posto avançado de vigilância.

Em paralelo, corre o canal que promete levar água do Rio São Francisco a 390 municípios castigados pela seca nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. No ponto de interseção, o canal ainda não foi concretado. O prazo original para a transposição entrar em funcionamento era 2010. O Ministério da Integração Nacional assegura que a obra será concluída este ano.

A Transnordestina, entretanto, tem futuro incerto. No canteiro industrial da obra, o barulho de obra foi substituído por um silêncio que incomoda. Lançada em 2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e propalada como a maior do mundo, a fábrica de dormentes – peças de concreto onde são acomodados os trilhos – funciona no local e chegou a produzir 4.800 unidades por dia, com 600 trabalhadores. Hoje, luz apagada, não há ninguém trabalhando.

Pilhas de dormentes, com 366 mil peças fabricadas, o suficiente para 220 quilômetros de trajeto, aguardam a retomada da obra. A gerência de produção industrial garante que os dormentes, mesmo sem uso, não correm risco de degradação, assim como as centenas de trilhos que repousam no parque administrativo. “Eles não estragam. São feitos para durar”, afiança um funcionário sem autorização para conceder entrevista.

No almoxarifado, um retrato contundente de uma obra paralisada: móveis, eletrodomésticos e objetos que ficavam nas casas e apartamentos dos funcionários e que, agora, lotam o galpão silencioso. Ao lado, cinco ambulâncias empoeiradas – uma sem pneu, outra sem farol.

Rastro de abandono

De Salgueiro, a ferrovia segue para o porto seco de Eliseu Martins (PI) e para os portos de Pecém (CE) e Suape (PE). Ao longo do percurso, os rastros do esquecimento são visíveis. Mais de 200 vagões foram deixados em cinco pontos diferentes – alguns com britas e dormentes, outros vazios.

Há centenas de trilhos largados nos trechos em que a obra foi interrompida, mato alto, estruturas de concreto rachando, passagens desgastadas pela erosão e máquinas que ficaram pelo caminho e se tornaram um monumento ao descaso com o dinheiro público num empreendimento que custava, inicialmente, R$ 4,5 bilhões e até agora já consumiu R$ 6,3 bilhões. O orçamento atual do projeto é de R$ 11,2 bilhões – o suficiente para construir 28 mil postos de saúde ou 12 mil escolas.

A construção da Transnordestina começou em 2006 e, a princípio, deveria ficar pronta em 2010. No auge, chegou a empregar 11 mil pessoas. Hoje, são 829 trabalhadores, segundo a empresa que tem a concessão da malha até 2057. A maioria, contudo, está de férias forçadas por causa de uma suspensão da obra. Os oito canteiros que existiam foram reduzidos a dois. Nenhum operário foi visto fazendo qualquer serviço na ferrovia.

De acordo com mapa da obra enviado pela Transnordestina Logística, a ferrovia está pronta nos trechos entre Missão Velha (CE), Paulistana (PI) e Custódia (PE). Mas, mesmo onde a construção foi finalizada, os efeitos da paralisação podem ser sentidos. Num raio de 15 quilômetros do canteiro industrial de Salgueiro, vagões enferrujados pelo caminho chamam a atenção de quem passa. A Transnordestina diz que as carruagens passam por manutenção e são constantemente deslocadas para evitar danos.

Não é o que afirma o desempregado Luciano Bernardino, 36 anos. O terraço da casa dele é uma varanda para o esquecimento. São 20 vagões nos trilhos que passaram por cima do terreno da família. “Esses vagões estão abandonados aí faz uns seis meses. Ninguém aparece para tirar eles daí não”, assevera.

Luciano simboliza os sentimentos antagônicos que marcam a relação de Salgueiro com a ferrovia. A expectativa alimentada no início da obra foi atropelada pela frustração. Ele e mais três irmãos chegaram a trabalhar na obra, mas acabaram demitidos. Enxergam o futuro com ceticismo. “Eu era motorista de caminhão. No começo, eram só flores. Depois, vieram as consequências. Cheguei a trabalhar para três empresas. De repente, mandaram todo mundo embora e falaram que, se a gente quisesse nossos direitos, só na Justiça. Derramamos muito suor nessa obra”, lamenta.

Nenhum dos quatro irmãos conseguiu outro emprego. O auxiliar de produção Antônio Bernardino, 37, trabalhou por quase oito anos na construção da ferrovia. Ainda tem R$ 74 mil a receber. “Agora está ruim porque todo mundo ficou desempregado e as coisas começaram a apertar. Estamos vivendo da roça. O que a gente mais queria é que a obra voltasse”, diz ele, desempregado há oito meses. Em Salgueiro, é fácil ver pontos de comércio e serviço fechados, com placas de aluguel ou venda.

Na altura da cidade de Terra Nova, no sertão pernambucano, a paisagem rural é cortada por trilhos com cerca de 150 vagões abandonados, cheios de pedras. Junto a eles, três carcaças: uma de gado morto pela seca e dois caminhões fora de estrada depenados, sem condições de uso, com seus pneus gigantes retirados suas estruturas se deteriorando.

Por todo o percurso, os sinais de desgaste se anunciam. Por falta de manutenção, a erosão corrói estruturas, a ponto de algumas terem rachado ou se partido. Foi o que ocorreu num trecho da ferrovia em Araripina, sertão de Pernambuco, num viaduto que passa por cima dos trilhos.

A mais de 400 quilômetros dali, em Itaueira, sudoeste do Piauí, onde ainda não há ferrovia construída, somente terraplenagem, uma ponte sobre a rodovia PI-140 começou a ser erguida, mas o serviço ficou inacabado. Quem passa pelo local se depara com vergalhões enferrujando, pedras amontoadas, placas de concreto e uma estrutura de ferro deixada numa estrada de barro.

O destino da ferrovia no Piauí é o porto seco de Eliseu Martins, onde o acesso se dá por uma estrada de barro em condições precárias e a obra da Transnordestina se resume a uma clareira gigante aberta no meio do cerrado, sem trilhos, corroída pela erosão, com equipamentos deixados a céu aberto e nenhum rastro de construção.

G1 PE

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