Nos últimos anos, tem chamado atenção o aumento do número de fiéis pentecostais e o ganho de expressão política de lideranças dessa comunidade. Para especialistas, êxito de lideranças religiosas na política testa limites entre o público e o privado. (Foto: Rinaldo Marques)
Por Luciano Galvão Filho
O Brasil é um país religioso. Segundo dados do Censo 2010, nove em cada dez brasileiros professam alguma devoção, majoritariamente, a fé cristã. Não é de surpreender que as instituições sejam, portanto, influenciadas por valores dessa doutrina. Porém, nos últimos anos, uma mudança tem chamado atenção de quem se dedica a interpretar a sociedade: o crescimento do número de fiéis pentecostais e o ganho de expressão política de lideranças surgidas dessa comunidade. Entre 2000 e 2010, o número de habitantes do País aumentou em 12%. No mesmo período, os protestantes cresceram mais de 60%. Se, em 1980, os evangélicos, somadas todas as diferentes denominações, eram 7% da população, no levantamento mais recente, correspondem a 22%. Nesse mesmo período, os católicos caíram de 90% para 65%.
O fenômeno foi particularmente acentuado entre a base da pirâmide social. De acordo com o Censo, a maior parcela dos novos convertidos é composta por pessoas de baixa renda e com reduzido grau de instrução. Antes minoritária e avessa à participação na política, notadamente a partir da Constituição de 1988, a comunidade pentecostal passou a ocupar espaços institucionais para defender publicamente suas bandeiras e valores. Evangelista da Igreja Assembleia de Deus e integrante da chamada “bancada evangélica” na Alepe, o deputado Adalto Santos (PSB) avalia que a expansão do protestantismo criou nos fiéis a necessidade de eleger representantes. “O povo evangélico tem crescido e assumido essa compreensão”, indica.
Em 2015, o Congresso Nacional instalou oficialmente a Frente Parlamentar Evangélica, atualmente composta por 189 deputados e quatro senadores. Na Assembleia Legislativa de Pernambuco, oito dos 49 deputados são evangélicos e dois deles foram os mais votados em 2014: Pastor Cleiton Collins (PP), com 216.874 votos, e Adalto Santos, com 158.874. Na Alepe, parlamentares protestantes são maioria na Comissão de Cidadania e coordenam as Frentes em Defesa da Família, de Combate às Drogas, em Defesa da Segurança Pública e de Combate ao Extermínio da Juventude Negra.
O cenário exige a reabertura de discussões a respeito da relação entre religião e Estado, analisa o cientista político da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Joanildo Burity. Para o pesquisador, o pentecostalismo se tornou “religião pública” ao ganhar o universo da política e dos meios de comunicação. A presença de lideranças cristãs nas instituições públicas, de acordo com ele, desafiaria o ponto de vista de que temas relacionados à fé deveriam se manter reservados ao âmbito privado dos templos. Para o professor, a perspectiva de que, numa democracia, o sagrado e o secular não se misturam seria antes um ideal, ou um projeto, do que uma realidade.
“Mesmo em países desenvolvidos, onde esse princípio foi primeiro implantado, não há separação clara entre os dois campos, e a presença pública das religiões nunca foi inteiramente afastada”, aponta. Burity lembra que, no seu sentido original, o ideal de Estado laico tem o objetivo de impedir interferências da política nos cultos minoritários, e não o contrário. “Há uma porosidade entre os espaços público e privado. O caráter estritamente individual da religião nunca foi implementado da maneira que se esperava e, mais recentemente, está sendo revertido”, comenta.
Segundo o sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Mariano, a laicidade “jamais esteve nas bases da democracia brasileira”. O pensamento cristão, sobretudo o católico, historicamente ocupou espaços importantes na sociedade e conquistou, por exemplo, a menção a Deus na Constituição, a admissão de capelães em instituições militares, o reconhecimento do casamento religioso pela lei civil e o financiamento público a escolas e hospitais confessionais, descreve o pesquisador no artigo “Religião e Política no Brasil”.
O antropólogo Cleonardo Barros (assista ao vídeo), que prepara tese a respeito do tema na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), avalia que a expansão do número de evangélicos rompe com a hegemonia do catolicismo, tradicionalmente mais aberto a sincretismos e ao diálogo com outras religiões. Desfaz-se, com isso, a ideia que guardávamos da laicidade brasileira. “O pentecostalismo desnaturaliza a relação entre Estado e catolicismo, e pressiona por um pluralismo de forças religiosas, ainda que exclusivamente dentro do cristianismo”, pondera.
Atuação social – “Representamos um segmento importante da população, que pode contribuir para a coletividade da mesma forma que sindicatos ou entidades em geral”, compara o líder da “bancada evangélica” na Alepe, deputado Pastor Cleiton Collins. O progressista acredita que, em relação a outras organizações da sociedade civil, as comunidades cristãs são mais eficientes na atenção a demandas da população. “Na ressocialização de pessoas que se envolveram com drogas e na prevenção da violência, por exemplo, a Igreja atua com muito mais eficácia”, diz Collins, ele próprio coordenador de trabalhos voltados a dependentes químicos. “Falta um olhar mais ajustado ao trabalho social das igrejas. Elas não precisam de políticos, mas a política precisa da Igreja”, examina.
Cleonardo Barros observa que cidadãos de camadas de renda mais baixa, privados de serviços de primeira necessidade, têm encontrado apoio entre os pentecostais para assumir condições de protagonismo na sociedade. “São homens e mulheres que, a partir da igreja, têm alcançado objetivos de autonomia individual, de empreendedorismo e de melhoria da qualidade de vida”, descreve o antropólogo. “Isso faz com que os membros da comunidade formem laços e construam uma pauta conjunta como nenhum partido político tem conseguido.” Analistas apontam que, apesar da heterogeneidade, membros de bancadas e comunidades evangélicas costumam atuar conjuntamente quando julgam necessário se opor a projetos que contrariem valores bíblicos.
Porém, para o cientista político Pedro Cavalcanti Soares, professor da Faculdade Damas da Instrução Cristã, se utilizada para impor convicções a outros grupos, essa atuação pode ser danosa à democracia. Quando defendem publicamente seus princípios, argumenta o estudioso, as religiões não deveriam alimentar antipatias contra outras minorias. “Num ambiente institucional saudável, não é possível descartar a voz política de um grupo. O ideal é que correntes adversárias possam competir dentro de um contexto plural”, considera Soares.
A deputada Teresa Leitão (PT) faz ressalvas à aproximação entre religião e política. Para a parlamentar, a existência de representantes que atuam em nome de um culto específico pode prejudicar o diálogo entre diferentes crenças e favorecer a intolerância contra outros segmentos. “Quem alcança o poder institucional não é o coletivo das expressões religiosas, mas os credos mais fortes e mais bem estruturados”, sublinha.O ponto de vista é compartilhado por Joanildo Burity, da Fundaj. O pesquisador reforça que a ascensão política dos pentecostais é legítima, mas reflete não ser justo “reivindicar a presença no espaço público para impedir o direito de outros ocuparem esse mesmo espaço”. “Se uma minoria, de caráter religioso ou não, quiser impor o desaparecimento de outra, perde completamente sua legitimidade”, crê.
Esta matéria faz parte do Tribuna Parlamentar de DEZEMBRO/2016
Tribuna Parlamentar/Alepe
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