sábado, julho 16, 2016

Projeto promove igualdade de gênero entre beneficiários do Bolsa Família

Rodas de conversa sobre equidade de gênero estão entre as atividades do projeto (Foto: Divulgação/Instituto Promundo)

Mais de 90% dos quase 14 milhões de titulares do programa federal Bolsa Família são mulheres, das quais 68% são negras, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Para intensificar a promoção da igualdade de gênero entre os beneficiários do Bolsa Família e ampliar a participação feminina nas decisões sobre gastos, um projeto envolveu homens e mulheres do programa na discussão sobre equidade. Com apoio do Fundo para a Igualdade de Gênero da ONU Mulheres, a metodologia e implementação do trabalho são da organização não governamental (ONG) Instituto Promundo.

Durante três anos e meio, foi feita uma série de atividades e campanhas educativas em comunidades rurais e urbanas do Rio de Janeiro e Recife para questionar os estereótipos sobre o papel de mulheres e homens que gerando desigualdades de gênero. Pesquisas qualitativas realizadas antes e depois dos trabalhos mostram mudanças significativas nas percepções dos homens e das mulheres sobre o tema.

Entre os participantes da iniciativa, o percentual de homens que achavam que cuidar dos filhos também é responsabilidade do pai subiu de 75% para 100% depois do projeto. O número de homens que afirmavam que cuidar da casa, das crianças e cozinhar para a família são as principais funções da mulher caiu de 35,5% para 22%. Antes do projeto, 13% dos homens declaravam que a decisão sobre os gastos familiares era exclusividade masculina. Esse percentual caiu para 8% ao fim do projeto.

No caso de algumas mulheres, a resignação sobre o papel feminino no cuidado com a casa e os filhos foi substituída pela consciência da responsabilidade dos homens nessas tarefas e sobre o direito das mulheres de buscar maior independência emocional e financeira.

Morro dos Prazeres

Para envolver os homens no projeto, foi criado um campeonato de futebol. No Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, zona norte do Rio de Janeiro, o comunitário e carteiro voluntário Orlando Dato foi o juiz e organizador do campeonato. Ele contou que, inicialmente, viu o projeto com descrédito, devido à cultura machista da comunidade.

“A equidade de gênero não é comum na favela, até porque somos vítimas dessa relação equivocada, temos uma carência grande de família, justamente por causa dessa iniquidade. Então a ideia deles [do projeto] ia na contramão da nossa cultura. Homem respeitar mulher na nossa comunidade eu achava utópico. Por isso, o resultado final me deixou perplexo, foi avassalador”, disse.

Para participar do campeonato, os jogadores tinham que frequentar as palestras e rodas de conversas sobre gênero que antecediam os jogos. “Alguns iam para a palestra somente por causa do futebol, mas acabaram se envolvendo. As palestras conscientizaram muito os jovens, e grande parte das pessoas que participaram do projeto era gente com liderança e eles saíram com outra visão”, completou Orlando Dato.

O líder comunitário contou que também aprendeu com o projeto. As atividades ocorreram em 2013, mas ele replica as estratégias de promoção de gênero nas aulas de futebol que dá no morro até hoje. “Nas minhas aulas de sub-10, sub-13 e sub-17 e de jovens adultos, todos os times têm obrigatoriamente 50% mulheres. Muitas coisas não precisam ser criadas, basta serem bem replicadas e essa ideia copiei deles.”

De acordo com Orlando Dato, os casos de violência doméstica e de gravidez na adolescência diminuíram no morro “por causa do projeto e pelo trabalho importantíssimo do Grupo Proa, que trabalha com prevenção”.

Segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2,4 mil habitantes vivem no morro, mas o carteiro acredita que o número é maior. “Tenho posição privilegiada na comunidade, pois corro todo o território e converso quase que pessoalmente com cada morador. Acredito que vivam aqui cerca de 16 mil pessoas”, completou.

Fundadora do grupo Proa, ONG que trabalha com promoção de saúde na região, Zoraide Gomes, mais conhecida como Cris dos Prazeres, coordenou as atividades de consciência corporal e as dinâmicas de grupo para refletir sobre a questão de gênero. “Para muitos, foi a primeira vez que participavam de uma roda de conversa, chegaram cheios de vergonha e, no final, faziam questão de participar”, contou Cris, que inspirada pelo projeto, passou a oferecer um café comunitário exclusivo para as mães da comunidade. “Nosso café é um sucesso, somos entre 20 e 40 mães, muitas mães adolescentes e beneficiárias do Bolsa Família. Falamos sobre os maridos, sobre machismo, sexismo, homens mandões.”

Apesar dos avanços, ela aponta que ainda há um longo caminho a percorrer. “Viemos de várias gerações de mães que criam os filhos para serem muito machos, o homem que trabalha e sustenta a casa. Hoje temos uma quebra de paradigma, mas o machismo ainda é grande.”

Depois, homens e mulheres se reuniram para pensar estratégias de passar os conhecimentos sobre equidade de gênero para outros membros da comunidade. O resultado foi um bingo que os moradores chamaram de Unindo Prazeres. A atividade ocorreu na quadra de esportes da comunidade, com direito a prêmios que iam de eletrodomésticos a jantar romântico. Em vez de números na cartela, mensagens sobre questões de gênero. Entre uma rodada e outra, o mestre de cerimônias lia mensagens sobre práticas de respeito entre homens e mulheres. O evento também teve peça de teatro.

A dona de casa Viviane Gomes, 32 anos, e o marido Jean Carlos, 31, participaram dos encontros, embora já praticassem com os filhos Cauã, 11 anos, e Jeandra, 7 anos, a igualdade de direitos e a divisão igualitária das tarefas domésticas. “Cauã tem suas tarefas, tira o lixo, enche as garrafas de água. Outro dia pediu para que o ensinasse a lavar a louça, porque vê o pai fazendo e quer fazer também. O exemplo conta muito dentro de casa. Se eu faço, meu marido pode fazer”, declarou ela.

Viviane reconhece que é minoria na comunidade. “Ouço muito 'meu marido trabalha então tenho que ficar com as crianças e cuidar da casa' e muitas preferem viver como Amélia. Eu não. Quero viver igual a ele. Ele quer curtir e eu também quero. Mas as coisas estão melhorando. Algumas estão acordando para vida e vendo que são capazes de mudar e serem mais felizes”.

Formação de multiplicadores

A fase atual do projeto tem sido capacitar profissionais que trabalham diretamente com o público beneficiário do Bolsa Família para que incluam a discussão de gênero em suas rotinas. Até o momento, mais de 400 profissionais de órgãos públicos e secretarias do Rio de Janeiro, de Nova Friburgo (RJ), Itararé (SP) e Recife (PE) participaram de cursos e tiveram acesso ao caderno de ferramentas, com orientações e sugestões de atividades, cuja versão online está disponível no site do instituto (http://www.promundo.org.br ).

No Rio de Janeiro, a capacitação foi feita em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social, com oficinas de 16 horas. Esses profissionais têm incentivado encontros sobre o tema nos locais de atuação e aplicado a metodologia aprendida. A coordenadora de Programas do Instituto Promundo, Vanessa Fonseca, explicou que a ideia agora é multiplicar a estratégia por outras cidades do país, por meio de convênios com prefeituras, governos estaduais e organizações parceiras. Ela lamentou que as conversas com o extinto Ministério do Desenvolvimento Social, não tenham seguido adiante. “Tivemos conversas durante um ano, estavam bem avançadas. Tínhamos previsto reunião final para disseminar o material entre os funcionários do ministério, mas aí ele foi extinto”

Para a representante da ONG, mudar a cultura de que existem papéis diferenciados e desiguais entre homens e mulheres é fundamental para que o Bolsa Família tenha maior impacto nas questões de desenvolvimento social.

“Precisamos fazer uma reflexão crítica sobre como essas normas agem socialmente em diversos níveis e engessam a liberdade, as possibilidades de escolha, de negociação, gerando todas essas desigualdades relacionadas à violência, ao salário, entre outras”, disse ela. “Um dos nós do programa [Bolsa Família] é que, ao mesmo tempo em que reconhece a mulher como cuidadora principal, esse reconhecimento pode reforçar essas normas, reforçar a ideia de que a mulher deve ser a única ou principal cuidadora das crianças, por exemplo. Por isso, a importância de um debate envolvendo homens e mulheres que ajude na transformação desse lugar das mulheres”, destacou.

Agência Brasil

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