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A reportagem e a entrevista são de Ingrid Matuoka, publicadas por CartaCapital, 30-03-2016.
Estes episódios pouco se diferenciam da cultura de violência que se instalou e se iniciou entre os brasileiros – adultos. E, agora, as crianças e adolescentes estão refletindo o mundo da "gente grande", com consequências igualmente grandes para eles e para a sociedade.
Para a professora da PUC de São Paulo Dulce Critelli, especializada em filosofia da educação, a sociedade está semeando uma ambiente de intolerância que tem em sua base a incapacidade de respeitar o outro.
Eis a entrevista.
Quais podem ser as consequências para uma criança de estar em um ambiente violento e de intolerância, reproduzindo discursos de ódio?
Essas atitudes são um controle social a respeito de coisas absolutamente aparentes, por defesas de convicções que nem sempre são conscientemente assumidas ou compreendidas. O que assusta é isso, e na criança fica mais visível.
Qual é a capacidade que uma criança ou adolescente tem de conhecer mais profundamente, e de forma ponderada, os exemplos históricos e as posições que está assumindo? É uma adesão sem compreensão, muito por alto.
Uma criança que vê uma briga não entende o que está acontecendo, e nem a sociedade tem conseguido compreender. Adultos que supõem que o outro está em uma posição diferente da dele já estão se omitindo de conversar para evitar brigas. Uma criança, no entanto, não tem essa ponderação. Ela vive ressoando o que está no ambiente dela e que aprendeu naturalmente.
Durante a infância, acumulamos uma série de princípios, atitudes e valores muito distraidamente, e isso vai formando nosso caráter. Aquilo que aprendemos e reproduzimos naturalmente tende a permanecer conosco até o final da vida. Faz-se necessária muita leitura, muita história vivida e reflexão para conseguir ponderar o que se está fazendo. As crianças não têm essa condição.
Quais podem ser as consequências para a sociedade de ter crianças se desenvolvendo em um ambiente como este?
Se nós e a escola não ajudarmos a mudar esse tipo de comportamento, é muito tentador dizer que caminhamos para o que vemos de convivência social e política nos países regidos por fundamentalismos e posições radicais. Toda essa intolerância anuncia como futuro possível o que está acontecendo nesses atentados em Paris, em Bruxelas, porque é a incapacidade de respeitar o outro.
O ideal é que a sociedade eduque as crianças favorecendo nelas o respeito pela própria opinião e pela opinião alheia, e que sejam capazes de construir acordos. Isso não significa ceder ou não ter opinião, mas compreender que, como todos os diferentes vivem no mesmo lugar, precisamos permitir que essas diferenças apareçam sem se destruir mutuamente. Uma sociedade precisa disso porque sempre vão surgir posições muito diferentes, e é necessário que surjam.
É muito duvidoso que todo mundo que esteja a favor ou contra o impeachment tenha uma posição só, por exemplo. Temos uma diversidade e uma singularidade imensa e cada um de nós provoca no meio social uma diferença. Não somos como os animais, que simplesmente se reproduzem constantemente no seu jeito e condição e são os mesmos ao longo da história.
O fato de crianças estarem se envolvendo em brigas e violência por questões partidárias mostra o que sobre a nossa sociedade?
Mostra quanto não temos um espírito cívico. Mas ao mesmo tempo é o começo de um interesse pela questão pública. Pode ser que ele não esteja sendo bem tratado e nem bem experimentado, mas é um começo.
Qual seria a forma ideal para os pais e responsáveis se portarem em relação às crianças nesse momento de intolerância?
Um dos artigos de Hannah Arendt sobre educação diz que toda criança, quando adentra uma sociedade, é uma novidade, e sua tendência é de não respeitar as tradições. A responsabilidade dos pais e professores seria a de fazer uma ligação: respeitar essa novidade, mas inseri-la no contexto da tradição.
Às vezes usamos essa palavra de uma maneira inadequada e parece que tradição é algo pesado e fechado, quando na verdade ela nos oferece um fio condutor que organiza nosso modo de ser atual.
Por exemplo, não faz parte de nossa tradição a noção de que a coisa pública também nos pertence e agora parece que isso está despertando. Respeitar essa tradição não é fazer de novo o mesmo, mas é entender o que vem vindo, conversar com o que nos organizou anteriormente e poder corrigir esse rumo.
Então os filhos sempre têm ideias diferentes dos pais e essa é uma oportunidade de começar a aprender que o pensamento do outro também tem valor, tanto quanto o seu. É um momento de criar acordos entre o novo e o velho, o possível e o atual. Não é porque elas já estão estabelecidas que são melhores, tampouco são melhores por serem novas. É nesse confronto, que não é um conflito, entre as duas facetas que se pode criar comportamentos novos.
E para isso eles têm de ouvir o que as crianças estão dizendo e refletir com elas, começando a oferecer a oportunidade de construir uma capacidade de compreensão e reflexão e de não pegar as coisas por alto, só porque o amigo também pensa assim.
Que atitude um professor pode ter para promover um ambiente mais saudável?
Nossa educação é precária e muitas escolas já têm um viés ideológico forte em que a intransigência e intolerância fazem parte, com a ideia de que existe uma verdade. Acho que a escola tem de se rever.
Um professor, por mais que tenha posição partidária clara para ele, não tem o direito de, numa escola, impor e mostrar que aquela é a única posição possível. Ele tem obrigação de mostrar todas as facetas de um debate.
Tenho aqui uma frase da Hannah Arendt que resume o fundamento da educação na escola e em casa: “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças. E é preciso proibi-la de tomar parte na sua educação”.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
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