terça-feira, dezembro 22, 2015

Haverá água para todos?


Perspectivas técnicas questionam a eficácia do mais antigo projeto de infraestrutura hídrica do País, fundamentando-se em pontos que alertam quanto à sobrevivência do maior rio genuinamente brasileiro, hoje debilitado pela forte degradação ambiental que o assola há mais de 500 anos.

Marcada por polêmicas, a obra chega a 77,8% de sua execução tendo o compromisso de sanar, a partir de 2016 – após quatro anos de atraso na entrega e um orçamento que saltou de R$ 4,7 bilhões para R$ 8,2 bilhões –, uma seca crônica que castiga 12 milhões de brasileiros, distribuídos por estados como Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba e Pernambuco.

Na perspectiva do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), o problema não é mais a sua conclusão, mas, sim, se haverá oferta hídrica suficiente no rio São Francisco para atender às bacias receptoras. “O São Francisco, hoje, é semelhante a um paciente na UTI, que tem que doar sangue e, por isso, lhe tiram o pouco que resta. O rio está morrendo”, lamenta o presidente da entidade, Anivaldo Miranda.

A preocupação do ambientalista – levada inclusive à última reunião do Conselho Gestor do Projeto da Transposição, realizada no mês de setembro, no Ministério da Integração, em Brasília – se legitima no momento em que situações antes nunca ocorridas se tornam realidade na bacia, a exemplo da inédita seca na nascente principal do São Francisco, do fechamento da única empresa que realizava o transporte hidroviário pelo leito do Velho Chico (devido ao alto grau de assoreamento no rio) ou mesmo da mancha de cianobactérias identificadas no leito do rio e que comprometeu, em decorrência da prática das vazões reduzidas, a captação de água para o abastecimento da população alagoana da bacia. ”O rio sofre forte degradação, somada a questões maiores, como o aquecimento global, que interfere na sua sobrevivência”, destaca Miranda.

São adversidades como essas que fazem o Comitê se preocupar ainda mais com a intensa disputa pelas águas são-franciscanas, para atendimento não só da transposição, mas também de grandes obras complementares de segurança hídrica que vêm sendo construídas nos estados e servirão de elo para recebimento e canalização das águas que escoarão pelos dois eixos previstos no projeto do governo federal, o norte e o leste.

Segundo informações do Ministério da Integração Nacional (MI), responsável pela execução da transposição, todas essas obras terão como condicionantes os 26,4 m³/s da vazão mínima outorgada – termo técnico para o volume de água que será disponibilizado pela Agência Nacional de Águas (ANA) ao projeto. “Há muitas perguntas que precisam ser respondidas. Qual será o custo final da água e da operação dessas obras? Como será a gestão compartilhada desses canais? Como se fará uso dessas águas? E a cobrança sobre elas?… Enfim, são inúmeras questões em aberto que nós, do Comitê, esperamos ver respondidas pela União. Só então poderemos avaliar qual será, de fato, o êxito desse projeto”, revela Anivaldo Miranda.

O CBHSF norteia seus questionamentos quanto ao sucesso da obra partindo do princípio de que ela prevê a segurança hídrica de 390 municípios do nordeste setentrional, espalhados por grandes centros urbanos da região (Fortaleza, Juazeiro do Norte, Crato, Mossoró, Campina Grande, Caruaru) e centenas de pequenas e médias cidades inseridas no semiárido, além de áreas do interior.

“É preciso pensar o impacto da transposição, pois há inúmeros projetos sendo planejados nas bacias receptoras, que vão depender das águas do São Francisco, somados a iniciativas estruturais em andamento na bacia do Velho Chico e à própria dinâmica de usos múltiplos já existentes. Mas haverá água para suprir toda essa demanda?”, indaga Miranda, em alusão ao abastecimento de infraestruturas como a Adutora do Agreste, em Pernambuco; os Ramais Apodi-Mossoró e Piranhas-Açu, no Rio Grande do Norte; o Cinturão das Águas, no Ceará; e o Canal Acauã-Araçagi, na Paraíba.

Conflito à vista
Grande crítico do projeto de transposição, o professor de Hidrologia e Irrigação da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), João Abner, observa que um conflito será gerado com o setor energético da bacia do São Francisco, decorrente desse embate em torno dos (cada vez mais escassos) recursos hídricos do Velho Chico.

De acordo com o professor, as estruturas hídricas suplementares que estão sendo construídas não têm como base para funcionamento a vazão de 26,4 m³/s, mas, sim, a vazão máxima de 127 m³/s, indo no sentido contrário ao da atual situação de penúria hídrica que vive a bacia do São Francisco. “Até dezembro de 2016, data de entrega do projeto, não haverá água para atender a toda essa demanda esperada. O que os estados dirão é que o único excedente de água no rio vem de correntes do setor elétrico, que detêm 80% para o consumo da geração de energia na bacia do São Francisco. Eles (estados) tentarão ampliar a outorga, alegando que há muito desperdício de água ao longo do São Francisco. Então, a pressão daqui pra frente será em cima desses 80%. Será que a geração de energia está disposta a ceder essa parcela? Creio que não”, opina, em referência ao fato de o setor elétrico deixar de lucrar por conta da possível medida.
A outorga das águas para a transposição prevê que somente quando o reservatório de Sobradinho (BA), que atua como uma espécie de pulmão do sistema, estiver com 94% de sua capacidade preenchida é que poderá ser utilizada a vazão máxima de 127 m³/s dos canais.

A declaração do acadêmico ganha força na fala do pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna, que apresenta os níveis de armazenamento hídrico da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, tidos como os piores da sua história. “A barragem está liberando 900 m³/s de água, enquanto entram apenas 400 m³/s. São os piores índices já observados. Esse volume é um horror para quem depende do rio São Francisco. Imagine para quem dependerá? Estamos vendo a falência total do Velho Chico e o governo, por conta de ingerências políticas, está preocupado em fazer testes para a transposição”, denuncia.

Outorga precisa ser fiscalizada
O secretário dos Recursos Hídricos, do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba, João Azevêdo Lins Filho, discorda da opinião dos técnicos, justificando que os estados estão considerando apenas a vazão mínima do São Francisco, uma vez que a atual problemática da seca não garante acesso aos 127 m³/s. “De forma nenhuma estão sendo considerados os valores da vazão máxima. No nosso estado, por exemplo, o Canal Acauã-Araçagi leva em conta a vazão de ponta que vem do eixo leste, de 4,2m³/, podendo chegar a 10 m³/s. Só podemos contar com a vazão mínima, que é a garantida pela ANA, ou seja, a de 26,4m³/s”, defende.

O professor João Abner alerta que será papel do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco fiscalizar a outorga concebida pela agência reguladora federal à transposição. “Terá que exigir cumprimento desses 26,4 m³/, caso contrário, o destino do rio São Francisco estará selado”, finaliza.

Garantia de água gera dúvidas

“A conclusão da transposição será a realização de um sonho secular”. Pelo menos esta é a frase de efeito do senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN) ao ressaltar a importância da obra para o Rio Grande do Norte. Na ótica do parlamentar, mesmo com toda a escassez que vive a bacia do São Francisco, o reservatório de Sobradinho garantirá água para atender às bacias receptoras.

“Quando Sobradinho apresentar abundância de água, essa vazão pode ser substancialmente maior, possibilitando a transferência, para reservatórios locais, de volumes capazes de potencializar o crescimento sustentável da economia da região”, diz, demonstrando desconhecer que a represa conta com apenas 9,44% do seu volume útil – que vem sendo reduzido a cada dia –, correndo o risco de perder a capacidade de geração de energia, caso não chova nos próximos meses. “Se o projeto de transposição não for finalizado até dezembro, o Brasil poderá assistir a uma situação caótica no sertão nordestino”, reforça o político.

O secretário de Recursos Hídricos e Energéticos de Pernambuco, José Almir Cirilo, admite ser utopia acreditar que a transposição por si só irá resolver o problema da água para os nordestinos. Ele revela que é preciso investir em outros dispositivos para suprir o abastecimento de todos os habitantes. “É necessário aplicar recursos em cisternas, poços e dessalinizadores, uma vez que a população difusa, distante dos sistemas de canais e adutoras, não tem como ser contemplada pela transposição”, declara. Em outro momento, porém, Cirilo admite que “as águas da transposição trarão garantia ao estado na ampliação da agricultura irrigada, assim como o abastecimento das cidades do sertão e agreste pernambucano”, assegura.

O gestor da pasta no Ceará, Francisco Teixeira, relembra que 70% da oferta hídrica do Nordeste está alocada no rio São Francisco. “Consequentemente, do ponto de vista da igualdade, por conta de Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte serem os estados nordestinos mais pobres em recursos hídricos, as águas do rio São Francisco são de fundamental importância para aumentar o abastecimento dos estados situados fora da bacia”, justifica.

Teixeira explica ainda que a transposição será essencial para o desconcentramento econômico. “No nosso estado, por exemplo, mais de 60% do PIB gira em torno de Fortaleza. O projeto garantirá o desenvolvimento da economia do semiárido, criando novos polos econômicos”, revela.
Já o secretário dos Recursos Hídricos da Paraíba, João Azevêdo Lins Filho, enxerga o projeto como o fio condutor de esperança para a segurança hídrica permanente desses quatro estados. Entretanto, ele reforça a cobrança de mais recursos para finalizar as obras complementares, hoje em ritmo lento. “A diminuição do repasse do governo federal este ano foi de 60%. O que vai acontecer é que algumas cidades serão abastecidas de imediato e outras só quando as obras complementares terminarem, ou seja, sem previsão”, explica.

Transposição X Revitalização
Na concepção do senador Raimundo Lira (PMDB-PB), que além de presidir a Comissão Externa do Senado de acompanhamento das obras da transposição também está a com a incumbência de fiscalizar a revitalização da bacia do São Francisco, antes de tudo é preciso impor ao debate questões que vão além de meras obras de engenharia. “Entendo que tão importantes quanto a transposição, da qual sou defensor e entusiasta, são as intervenções para revitalizar o Velho Chico”, diz.

Para ele, ações permanentes ligadas à recuperação de nascentes, ao zoneamento ecológico-econômico, à proteção das matas ciliares e ao manejo integrado de microbacias devem ser priorizadas, a fim de que se aumente a qualidade e quantidade de água do rio.

O presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, lista quatro pontos fundamentais, dos quais o comitê de bacia não abre mão de defender no recém-reformulado Conselho Gestor do Projeto da Transposição, colegiado vinculado ao Ministério da Integração Nacional e responsável pela eficácia na gestão integrada entre os órgãos federais e as bacias doadoras e receptoras das obras de transposição das águas do rio São Francisco.

“O Comitê aceitou fazer parte deste Conselho para que alguns aspectos essenciais à sobrevivência do rio São Francisco sejam garantidos: I) o estrito respeito aos termos da outorga que foi dada ao projeto; II) a fiscalização para garantia do uso racional e sustentável da água; III) a conscientização das populações das bacias receptoras de que agora fazem parte da grande família são-franciscana, com seus bônus e seus ônus; IV) o esforço para engajar essas populações, juntamente com os governos e demais usuários dos estados receptores, na necessária luta pela revitalização urgente do São Francisco”, argumenta.

Miranda recorda que o próprio governo federal garantiu que, para cada real gasto na transposição do rio São Francisco, um real seria investido em revitalização. “Só que esse nível de investimento nunca ocorreu”, diz. Ele alerta a Presidência da República para a necessidade de reformulação do também Conselho Gestor da Revitalização, com a participação do Comitê. “É urgente que esse programa passe a ter uma definição nos orçamentos dos governos”, conclui.

*Esta matéria foi veiculada na Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 07 | DEZ 2015. Para ler a revista completa, acesse.

ASCOM – Assessoria de Comunicação do CBHSF

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