“O rio está mais seco, cheio de areia. E tem muita coisa lá dentro, umas ostras que não tinha antes. Coisas sujas”, diz uma das crianças do Quilombo da Lapinha, em MG. (Foto: praia do Sobrado, em Petrolândia, às margens da represa de Itaparica, em PE/Lúcia Xavier)
A reportagem é de Cibelih Hespanhol, Helen Santa Rosa e João Roberto Ripper, publicada por Agência Pública, 30-09-2015.
Crislaine é uma criança vazanteira, integrante de uma população tradicional que vive nas áreas inundáveis do médio São Francisco. Nessas comunidades, o rio é parte da casa e da vida de cada um. Todos os dias, crianças e adultos vão até ele para pescar, tomar banho, usar suas águas para cozinhar e lavar utensílios. Mas, há alguns anos, os vazanteiros vêm enfrentando dificuldades para produzir mandioca, milho e feijão, devido à secura e à poluição do São Francisco. “O rio significa para mim a minha vida. Sem o rio não sou ninguém”, diz Maria Aparecida Paz, a Dinda, em sua casa no Quilombo da Lapinha. É seguida por Dermira Borges, a Deca, que complementa: “É, o rio é um pedaço de nós. A gente nasceu e se criou no São Francisco. Rio vivo, nós vivos. Rio morto, nós mortos”.
Além das dificuldades crescentes para o cultivo, os moradores se preocupam também com a falta de peixes. “Antes era o seguinte. A mulher estava cozinhando, você dizia: ‘Vou lá pegar o peixe’. Ia com a vara e o anzol, e na hora você já tinha peixe pro almoço e pro jantar. Hoje é uma dificuldade muito grande para pescar. Você chega até a margem do rio, olha, olha e não vê um peixe, nada”, lamenta Manoel Ferreira de Souza, mais conhecido como Manuel Saruê, vazanteiro e pescador.
As comunidades vazanteiras combinam atividades de agricultura, pesca, criação animal e extrativismo e se distribuem por território segundo os ciclos naturais das águas, procurando manter acesso a regiões fertilizadas por matéria orgânica em margens e ilhas. São chamados de “povos das terras e águas crescentes” porque estão sempre acompanhando o rio, de modo a mudar suas casas e áreas de plantio de acordo com os períodos de cheias e baixas do São Francisco.
Chegar até eles é ser logo tomado pelas crianças que nos acolhem. Em meio às conversas, meninos e meninas puxam nossas mãos, brincando e rindo, e logo nos levam até o fundo de suas casas, onde mora o São Francisco.
Thaislaine Rodrigues, de 11 anos, vive na ilha de Pau Preto, também pertencente ao município de Matias Cardoso. Seu dia a dia é como o de toda criança. Às 6 horas já está de pé, ainda sonolenta, mas animada com o dia que começa. Toma café e vai para a aula, que diz ser tão divertida que quase não vê o tempo passar. Quando volta, ajuda a mãe no almoço e na limpeza da casa. À tarde, faz seu dever da escola e brinca com os irmãos, os gêmeos Gustavo e Breno, cinco anos mais novos.
O que faz diferir a rotina de Thaislaine da de tantas outras é a presença silenciosa e constante do São Francisco, rolando suas águas no fundo do quintal. O café tomado de manhã, tão logo a menina acorda, é feito com as águas do rio, que também lavam a casa e são usadas para cozinhar o almoço da família. Bem à vontade no São Francisco, ela conta que todos os dias vai até ele: “Quando é 5 horas da manhã a água está tão morninha! É muito bom tomar banho aqui”. As mudanças não passam despercebidas nem para seus olhos de criança. “O rio está mais seco, cheio de areia. E tem muita coisa lá dentro, umas ostras que não tinha antes. Coisas sujas”, diz.
O Velho Chico em crise
O São Francisco é o maior rio que “nasce” e “morre” em território brasileiro, brotando na serra da Canastra, em Minas Gerais, e desaguando no oceano Atlântico ao fim de seus 2.863 quilômetros de extensão. Sua bacia hidrográfica abrange 503 municípios de seis estados – Minas Gerais (36,8%), Bahia (48,2%), Pernambuco (10,9%), Alagoas (2,2%), Sergipe (1,2%) e Goiás (0,5%) – e o Distrito Federal (0,2%). E suas águas passam pelos biomas do cerrado, caatingae mata atlântica, fazendo do Velho Chico fonte essencial para a vida de pessoas e comunidades.
Há alguns anos, cerca de 13 milhões de pessoas que vivem das águas do São Francisco vêm notando que o seu Velho está diferente. Para Ruben Fonseca, pesquisador e integrante da Articulação São Francisco Vivo, é uma evidência “até para quem não quer ver” de que o rio está à míngua. “Temos reservatório operando com o mínimo, uma mancha negra que surgiu na baixa de Paulo Afonso, vários indícios de crise”, disse. A atual seca do São Francisco é considerada a pior dos últimos cem anos, o que compromete o uso do rio como fonte de alimentação, higiene e transporte pelas comunidades que vivem em seu entorno.
Em junho, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco lançou a campanha “Eu viro a carranca pra defender o Velho Chico”, como forma de chamar atenção para o momento crítico. Claudio Pereira, coordenador da Câmara Consultiva Regional do Médio São Francisco, lembra que a situação do rio já é denunciada há 30 anos. E a crise atual é produto do abandono do problema. “O governo, nas escalas municipal, estadual e federal, vê o rio como um recurso infinito e não percebe que não se trata apenas de água, mas de um contexto social, cultural e econômico vulnerável que pode a qualquer momento acabar. Além da escassez da água, o rio sofre com o uso de agrotóxicos, produção agroindustrial, esgotos domésticos e de grandes indústrias, demandas de irrigação… São interesses econômicos que têm prevalecido em detrimento das capacidades e condições do rio São Francisco.”
Em relatório divulgado no ano passado, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas traz levantamentos sobre a situação do rio, examinado em 258 estações de monitoramento. Entre 2013 e 2014, a bacia do rio São Francisco aumentou em 3% o seu nível hipereutrófico, o que caracteriza elevada concentração de matéria orgânica, comprometendo o uso de suas águas. E registrou uma densidade de cianobactérias superior a 50 mil células por mililitro (o valor máximo permitido para uso de recreação e contato primário é de 10 mil células por mililitro). O São Francisco está entre os que tiveram as piores condições em relação aos ensaios ecotoxicológicos, que detectam efeitos tóxicos causados em organismos-teste. Nas amostras utilizadas do rio, foi observada a letalidade dos organismos, apontando para um “efeito agudo” de toxicidade, que pode estar associado a esgotos domésticos e efluentes industriais.
Tão logo ouvem a pergunta “o rio mudou?”, as crianças vazanteiras do Quilombo da Lapinha disparam sua lista de impressões: “Está seco, muito baixo… Ele antes era alto, não tinha mato no meio dele”, diz um grupo de meninos e meninas após a brincadeira em suas margens. Em Pau Preto, caminhando na extensa praia que a secura do rio deixou à mostra, Thaislaine conta que fez um trabalho na escola sobre o São Francisco. “Eu também já fiz uma pesquisa aqui com a professora e meus colegas. A gente queria ver como o rio está. E ele está muito poluído”, diz. Sua mãe, Maria Edna Porto, reclama do mau cheiro das águas, que pode sentir de sua casa. “É a primeira vez que eu vejo o rio desse jeito. Eu fico preocupada porque por enquanto a gente tem água. Mas e daqui a uns dez anos? Se o rio acabar, os vazanteiros não têm como sobreviver”, afirma.
Em Pau Preto, a secura compromete o transporte por balsas – meio utilizado pelas crianças para irem à escola. Agora, elas precisam acordar mais cedo para fazer o caminho por terra, o que acrescenta pelo menos uma hora no percurso até a aula. O nível das águas está tão baixo que muitas áreas guardam apenas uma lembrança de já terem sido habitadas pelo rio, adivinhado na terra úmida e em pequenas conchas encontradas no chão. Nessas áreas, praias extensas, Davi Rodrigues toca seu gado a cavalo. Devido à dificuldade em manter a atividade de pesca, o pai de Thaislaine precisou se dedicar à criação de animais para sustentar a família.
“Por que o rio São Francisco está tão seco e poluído?”, perguntamos às crianças vazanteiras. E elas apontam a falta de chuva, típica do semiárido mineiro, como motivo principal. Iudi Gonçalves, de 11 anos, indica outro possível motivo: “É por causa dos empresários que tiram água da gente”, acredita. E Cícero Lima, da articulação Vazanteiros em Movimento, dá razão ao menino: “Crise toda vida teve, essa não é a primeira. O rio ficava seco, mas se recuperava. Hoje, pega um metro de água de um afluente ou chuva, os projetos de irrigação tiram dois”, diz.
O projeto a que Cícero e Iudi se referem é o Jaíba, que, mesmo em face da situação crítica do rio, segue desviando suas águas – mais especificamente, 410,3 milhões de metros cúbicos por ano. Em atuação há mais de 40 anos no norte de Minas Gerais, o projeto de irrigação é criticado por movimentos sociais, que denunciam a taxação desigual entre pequenos e grandes produtores.
Para os vazanteiros, o projeto Jaíba é sinônimo de temores. Pouco se sabe das consequências do desvio de águas de um rio em crise, do qual necessitam para sua sobrevivência. Além disso, sua atuação já deixou marcas na vida do povo das vazantes. Em sua política compensatória, o projeto significou a expulsão do seu território tradicional, quando dezenas de famílias vazanteiras tiveram de sair para que fossem criadas Unidades de Conservação.
Quando preservar é excluir
Construído para ser o maior projeto de irrigação da América Latina, o Jaíba possui mais de 18 mil produtores beneficiados no norte de Minas Gerais. Alguns de seus canais, que utilizam águas do São Francisco, são maiores do que os próprios braços do rio. Fruto da parceria entre os governos federal (Codevasf) e de Minas Gerais (Ruralminas), sua implantação teve início nos anos 1950 e se expandiu durante os anos 1970 com o empréstimo do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), instituição financeira do Banco Mundial.
De lá para cá, foram quatro etapas de operação do projeto. Na segunda delas, no final dos anos 1990, foi imposta uma política ambiental compensatória pelo Banco Mundial, devido aos danos causados no cerrado brasileiro. Em outubro de 1998, os decretos 39.953/1998 e 39.954/1998 criaram, respectivamente, as Unidades de Conservação dos parques Verde Grande e Lagoa do Cajueiro. E, em 2000, começou o processo de desapropriação das fazendas que comporiam o parque.
O que não se leva em conta, em todo o processo compensatório, é a existência de comunidades que há séculos viviam naquela terra e que foram expulsas para a construção dos parques. Nessa época, as comunidades tradicionais ainda não se reconheciam como tal, mas a violação de direitos serviu de impulso para lutar por eles. “Não existe comunidade tradicional sem território. A Constituição diz que é dever do Estado proteger as manifestações culturais porque elas contribuíram para o que o povo brasileiro é hoje, mas o Estado não cumpre essa obrigação”, afirma André Souza, assessor jurídico do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, entidade de apoio aos direitos dos povos e comunidades tradicionais.
No Quilombo da Lapinha, cujos moradores se identificam como “vazanteiros quilombolas”, o processo de autorreconhecimento se deu em 2005, certificado pela Fundação Palmares. No ano seguinte, a comunidade iniciou sua primeira retomada, recuperando área referente à Fazenda Casa Grande, de 4.000 hectares, propriedade da empresa Farevasp. Em seu laudo antropológico, a comunidade se identifica com um território equivalente a 7.720 hectares, que também corresponde a parte da área do Parque Lagoa do Cajueiro. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dedica-se atualmente à elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), previsto para o final deste ano, após o qual será feita a identificação definitiva do território. A assessoria do Incra não sabe informar quanto tempo levará até a titulação definitiva do território do Quilombo da Lapinha.
Em Pau Preto, o reconhecimento como “vazanteiros” não garantiu uma fundamentação jurídica tão consistente como a dos quilombolas. A comunidade vazanteira depende da assessoria jurídica de organizações e pessoas que buscam um caminho para a regulação de seu território. Com esse apoio, realizou sua primeira ocupação em julho de 2011, retomando a área da Fazenda Catelda, propriedade da Agropecuária Catelda S.A. A partir daí, iniciaram-se reuniões de negociação entre os vazanteiros e o Instituto Estadual de Florestas (IEF), órgão responsável pelo Parque Verde Grande.
Essas negociações já se estendem por oito anos. Para que a comunidade retorne legalmente ao seu território de origem, é necessário um processo de desafetação da área do Parque Verde Grande, mas o órgão responsável pela ação, o IEF, negou-se oficialmente a realizá-la em parecer técnico divulgado em abril deste ano. Procurado pela reportagem, o IEF não quis se pronunciar sobre o caso.
A comunidade parte agora para a pressão política, com o apoio da Articulação Rosalino de Povos e Comunidades de Tradicionais. “Eu costumo dizer que aqui nesta região, sobretudo na comunidade de Pau Preto, é o povo da resistência, da paciência e da esperança renovada”, diz Maria Zilah de Mattos, que há 18 anos acompanha os vazanteiros pela Comissão Pastoral da Terra. “Eles falam: ‘Qual vai ser o futuro dos nossos filhos amanhã se a gente não conseguir garantir o peixe e o território?’. É um povo que sempre viveu sem nenhuma visibilidade e teve sempre uma luta para permanecer aqui.”
Água e terra são as principais reivindicações das comunidades tradicionais, que na vida coletiva manejam os poucos recursos naturais de que dispõem. “Vocês tão vendo essa beleza aqui nessa margem do rio? Pois é, se ainda existe isso aqui agradece a Deus e a nós que estamos aqui. Porque, se os empresários estivessem aqui, até o barulho do rio já estaria desmatado”, aponta Manuel Saruê. “Tem hora que a gente fica até revoltado com esses tipos de lei que eles fazem, que é contra o ser humano sobreviver naquela área.” A conservação do meio ambiente, aliada ao acesso ao território pelas comunidades tradicionais, é garantida pela Constituição Federal e pela Convenção da Biodiversidade, da qual o Brasil é signatário. Apesar disso, a concepção conservacionista de órgãos estaduais em Minas Gerais reforça a contradição entre homem e terra. “Esta é a grande contradição e a revolta das comunidades. Se foram elas que preservaram, por que agora têm que sair? Por que não há uma compatibilidade entre a comunidade e seu modo de vida com a preservação ambiental?”, diz André Souza.
Para os vazanteiros, o São Francisco é mais do que suas correntezas que passam: chega a ser algo vivo. Até possui sua entidade protetora, o “cumpadre” do rio (como é chamado), descrito como um homem negro de chapéu que mora dentro do São Francisco e comanda suas águas, decidindo quem delas recebe peixes e cuidados. As crianças tremem de medo tão logo ouvem falar do “cumpadre”, mas os adultos já se acostumaram com ele. “Quando a gente era criança e ficava fazendo muita farra no rio, minha vó falava: ‘Ei, pode parar. O rio tem dono!’”, lembra Dinda. “E tem umas coisas: você não entra de sandália dentro do rio. Tem que pedir licença para entrar. Se estiver fumando, você tira um pouquinho do fumo e joga no rio, para dar para o ‘cumpadre’. É uma ciência que a gente acostumou a ter, de respeito com o rio.”
“Sem água nós não vivemos”, sabem as crianças vazanteiras. Sem terra, tampouco. Correndo e brincando nas águas do rio São Francisco, as crianças não sabem, mas encarnam silenciosa dúvida para quem as observa: será que elas, quando adultas, ainda levarão os saberes transmitidos no modo de tirar vida da água, contando lendas sobre o “cumpadre”, firmando os pés em seu território, se reconhecendo como seus pais se reconheciam? Será que – como o rio São Francisco – irão resistir?
Clique na imagem para assistir ao vídeo Nem água nem terra.
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