Livro "Guerreiros do Sol" completa 30 anos com a façanha de ter redefinido a visão até então predominante sobre o cangaço - um fenômeno complexo e essencial para explicar a região. Três décadas depois, as múltiplas facetas do tema se estruturam em duas correntes de pensamento pelas quais o papel histórico do cangaceiro oscila entre o de bandido e herói
Há 30 anos, o historiador recifense Frederico Pernambucano de Mello resolveu romper com a tradição acadêmica e alterar o rumo de como o fenômeno social nordestino vinha sendo estudado até ali. Naquela época, o tema, segundo ele, era entregue a muitos preconceitos e visões apaixonadas. Era hegemônica uma visão engajada, acostumada a interpretar o cangaço como fenômeno econômico, fruto da opressão do coronel sobre o cangaceiro. Isso foi derrubado por terra mediante pesquisas de campo.
Assim surgiu a primeira edição de Guerreiros do sol - Violência e banditismo no Nordeste do Brasil(A Girafa, 520 páginas, R$ 55). Para marcar as três décadas da primeira edição, a Academia Pernambucana de Letras realiza evento comemorativo no próximo dia 9 de novembro, às 16h.
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Contribuição valiosa da obra foi ter explicado o comportamento e as motivações daqueles vistos muitas vezes como “facínoras”. Isso foi possível por meio de um “anteparo para a existência moral” do cangaceiro, cujas justificativas para as próprias ações variavam. Uns diziam serem decorrentes de um desejo de vingança (pela morte de um parente, por exemplo), de uma necessidade de fugir das autoridades ou de ter alguma fonte de renda por falta de opções. “Nem sempre eram verdades, mas, pelo quadro de valores prevalecentes no Sertão, quando se alega estar em missão de vingança, por exemplo, mais do que direito, você é visto como detentor de um dever”, diz Frederico.
No prefácio da edição de 1985, o sociólogo Gilberto Freyre assinalou um trunfo da mudança de visão, a respeito de “haver dois Nordestes, não um só, o que leva à consideração de existir mais de um banditismo, e não de um só, sob o mesmo sol tropical”. E concluiu: “São vários cangaços, várias honras”.
Para o também pesquisador do tema e historiador João de Sousa Lima, o cangaço é uma página histórica escrita unicamente no Nordeste brasileiro e, como todo fato do passado, não pode ser julgado. “Lampião foi, antes de tudo, história. Andou à margem da lei, matou, roubou. Contudo, a polícia foi muito pior. Mataram mais, roubaram mais e estupraram mais”.
Autor da antologia O cangaço na poesia brasileira (2009), o professor da UFPE e doutor em literatura Carlos Newton Júnior destaca como escritores como Ariano Suassuna se anteciparam de alguma forma em destacar o lado “vítima” dos protagonistas do banditismo. “Se você observar o enredo da peça Auto da Compadecida, de 1955, os cangaceiros são os únicos que vão direto para o céu. Isso talvez se explique pelo fato de a família de Ariano ter sido de alguma forma perseguida pelo cangaço”. De maneira semelhante, poetas das décadas de 1920 e 1930, como Rodrigues de Carvalho e Serrote Preto, já construíam um mito em torno da figura de Lampião, ao abordar o suposto “corpo fechado” dele.
Eles eram cangaceiros, mas também homens e mulheres como eu e você. Antes de aderirem à saga sanguinolenta e bandoleira, tinham vidas comuns, geralmente sofridas. Quem foram essas pessoas? A questão é essencial para entender o comportamento de quem viveu no contexto do banditismo sertanejo.
Em Viagens ao Nordeste do Brasil (1942), o pintor inglês Henry Koster descrevia os sertanejos da época do cangaço: “Eram geralmente resolutos e bravos. Corajosos, sinceros, honestos e hospitaleiros, ainda que extremamente ignorantes e dados a crenças em encantações, relíquias e coisas da mesma ordem”. Embora ele classifique os sertanejos como “boa raça de homens”, adverte: “Essa gente é vingativa. Ofensas muito dificilmente são perdoadas e, em falta de lei, cada um exerce a justiça pelas próprias mãos”.
Em outras palavras, Euclides da Cunha, autor do clássico Os sertões (1902), dizia o quanto o sertanejo “calcula friamente o pugilato (confronto), livre de expansões entusiásticas (...) para não desperdiçar a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado”. Em suma: “É o homem que dorme na pontaria”. O próprio Euclides diagnosticava o atraso na vida sertaneja, segundo Frederico Pernambucano de Mello, classificada como “retrógrada” por estar “envolta por toda uma estrutura familiar, política, econômica, moral e religiosa arcaica e arcaizante, fruto de isolamento de séculos”.
A escritora Marilourdes Ferraz, na obra O canto do Acauã (1978), descreve o Sertão pernambucano testemunhado pelos pais e avós: “Nos primórdios do século 20, a região sertaneja do rio Pajeú permanecia estática no tempo, com seus habitantes vivendo quase tão isolados quanto os primeiros colonizadores que ali se estabeleceram”. Em consonância com o depoimento, Frederico Pernambucano chama a atenção para a existência, naquela época, de “um Sertão tardiamente feudal”, com indiferença em face da morte (derivado do fatalismo religioso) e uma insensibilidade no trato com o sangue (por causa da natureza cruenta da atividade pecuária).
“Não é de se estranhar que cangaço tenha sido forma de vida criminal orgulhosa, ostensiva, escancarada, carnavalesca”, avalia. E essas características se mostravam nos mais diversos tipos de figuras violentas, para além do cangaço, como o valentão (espécie de justiceiro), o cabra (fiel escudeiro do patrão, agressor e defensor), capanga (guarda-costas), pistoleiro (matador) e jagunço (profissional “freelancer” cuja lida diária com as armas era o meio de vida.
Da parte da população, a cultura sertaneja abonava o banditismo dos “cabras da peste”, e até torciam pela vitória dos grupos com os quais simpatizavam, como times de futebol. Nas feiras, as façanhas de guerra dos capitães do cangaço começam a povoar os versos dos cantadores de feira, dos emboladores, rabequeiros. De maneira semelhante, chega à literatura de cordel e torna Lampião e Maria Bonita ícones pop absolutos.
Há cinco meses, o cineasta Wolney de Oliveira lançou o documentário Os últimos cangaceiros, sobre um casal de remanescentes do bando de Lampião. Eles fugiram depois da morte do líder e guardaram segredo a respeito do passado sangrento por mais de 50 anos. No longa-metragem, o senhor de 95 anos chega a confessar ao menos duas dezenas de crimes. Ainda assim, o cineasta diz ter tido o cuidado de não julgar ele próprio o casal como bandidos, vítimas ou heróis. “No filme eles aparecem das duas maneiras. A edição permite ao telespectador tirar as próprias conclusões, pois o final é aberto”, conta o diretor.
Em uma cenas, o ex-cangaceiro Moreno, outrora braço direito para os “serviços pesados” de Lampião, retorna à cidade natal e é tratado como herói. Décadas atrás, ele havia sido acusado injustamente pela polícia de ter roubado um carneiro e quase morreu depois de ser espancado. “Para mim, ele é produto da época em que viveu. Como era de família pobre, entra no cangaço pra se vingar da surra. Do ponto de vista humano, me chamou a atenção o fato de ele ter sonhado, na juventude, em ser policial. Tentou se alistar, mas, pela estatura e porte físico, não foi aceito. Claro, há outros casos em que você pode classificar como bandido profissional, porque isso também se tornou meio de vida naquela época”, conclui Wolney de Oliveira.
Serviço
Sessão de homenagem aos 30 anos do livro Guerreiros do sol - Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, de Frederico Pernambucano de Mello, com palestra da escritora Anna Maria César.
Quando: 9 de novembro, às 16h
Onde: Academia Pernambucana de Letras (Avenida Rui Barbosa, 1596, Graças)
Informações: 3268-2211
O cangaço foi uma onda de banditismo em um Nordeste de pobreza, violência e falta de poder constituído. Eles eram combatidos pelas Forças Volantes do governo, comandadas por policiais, mas formadas por desempregados do setor rural, fortemente armados.Teve seu fim definitivo com a morte do líder Lampião, em 1938.
No prefácio da edição de 1985, o sociólogo Gilberto Freyre assinalou um trunfo da mudança de visão, a respeito de “haver dois Nordestes, não um só, o que leva à consideração de existir mais de um banditismo, e não de um só, sob o mesmo sol tropical”. E concluiu: “São vários cangaços, várias honras”.
Para o também pesquisador do tema e historiador João de Sousa Lima, o cangaço é uma página histórica escrita unicamente no Nordeste brasileiro e, como todo fato do passado, não pode ser julgado. “Lampião foi, antes de tudo, história. Andou à margem da lei, matou, roubou. Contudo, a polícia foi muito pior. Mataram mais, roubaram mais e estupraram mais”.
Autor da antologia O cangaço na poesia brasileira (2009), o professor da UFPE e doutor em literatura Carlos Newton Júnior destaca como escritores como Ariano Suassuna se anteciparam de alguma forma em destacar o lado “vítima” dos protagonistas do banditismo. “Se você observar o enredo da peça Auto da Compadecida, de 1955, os cangaceiros são os únicos que vão direto para o céu. Isso talvez se explique pelo fato de a família de Ariano ter sido de alguma forma perseguida pelo cangaço”. De maneira semelhante, poetas das décadas de 1920 e 1930, como Rodrigues de Carvalho e Serrote Preto, já construíam um mito em torno da figura de Lampião, ao abordar o suposto “corpo fechado” dele.
Eles eram cangaceiros, mas também homens e mulheres como eu e você. Antes de aderirem à saga sanguinolenta e bandoleira, tinham vidas comuns, geralmente sofridas. Quem foram essas pessoas? A questão é essencial para entender o comportamento de quem viveu no contexto do banditismo sertanejo.
Em Viagens ao Nordeste do Brasil (1942), o pintor inglês Henry Koster descrevia os sertanejos da época do cangaço: “Eram geralmente resolutos e bravos. Corajosos, sinceros, honestos e hospitaleiros, ainda que extremamente ignorantes e dados a crenças em encantações, relíquias e coisas da mesma ordem”. Embora ele classifique os sertanejos como “boa raça de homens”, adverte: “Essa gente é vingativa. Ofensas muito dificilmente são perdoadas e, em falta de lei, cada um exerce a justiça pelas próprias mãos”.
Em outras palavras, Euclides da Cunha, autor do clássico Os sertões (1902), dizia o quanto o sertanejo “calcula friamente o pugilato (confronto), livre de expansões entusiásticas (...) para não desperdiçar a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado”. Em suma: “É o homem que dorme na pontaria”. O próprio Euclides diagnosticava o atraso na vida sertaneja, segundo Frederico Pernambucano de Mello, classificada como “retrógrada” por estar “envolta por toda uma estrutura familiar, política, econômica, moral e religiosa arcaica e arcaizante, fruto de isolamento de séculos”.
A escritora Marilourdes Ferraz, na obra O canto do Acauã (1978), descreve o Sertão pernambucano testemunhado pelos pais e avós: “Nos primórdios do século 20, a região sertaneja do rio Pajeú permanecia estática no tempo, com seus habitantes vivendo quase tão isolados quanto os primeiros colonizadores que ali se estabeleceram”. Em consonância com o depoimento, Frederico Pernambucano chama a atenção para a existência, naquela época, de “um Sertão tardiamente feudal”, com indiferença em face da morte (derivado do fatalismo religioso) e uma insensibilidade no trato com o sangue (por causa da natureza cruenta da atividade pecuária).
“Não é de se estranhar que cangaço tenha sido forma de vida criminal orgulhosa, ostensiva, escancarada, carnavalesca”, avalia. E essas características se mostravam nos mais diversos tipos de figuras violentas, para além do cangaço, como o valentão (espécie de justiceiro), o cabra (fiel escudeiro do patrão, agressor e defensor), capanga (guarda-costas), pistoleiro (matador) e jagunço (profissional “freelancer” cuja lida diária com as armas era o meio de vida.
Da parte da população, a cultura sertaneja abonava o banditismo dos “cabras da peste”, e até torciam pela vitória dos grupos com os quais simpatizavam, como times de futebol. Nas feiras, as façanhas de guerra dos capitães do cangaço começam a povoar os versos dos cantadores de feira, dos emboladores, rabequeiros. De maneira semelhante, chega à literatura de cordel e torna Lampião e Maria Bonita ícones pop absolutos.
Há cinco meses, o cineasta Wolney de Oliveira lançou o documentário Os últimos cangaceiros, sobre um casal de remanescentes do bando de Lampião. Eles fugiram depois da morte do líder e guardaram segredo a respeito do passado sangrento por mais de 50 anos. No longa-metragem, o senhor de 95 anos chega a confessar ao menos duas dezenas de crimes. Ainda assim, o cineasta diz ter tido o cuidado de não julgar ele próprio o casal como bandidos, vítimas ou heróis. “No filme eles aparecem das duas maneiras. A edição permite ao telespectador tirar as próprias conclusões, pois o final é aberto”, conta o diretor.
Em uma cenas, o ex-cangaceiro Moreno, outrora braço direito para os “serviços pesados” de Lampião, retorna à cidade natal e é tratado como herói. Décadas atrás, ele havia sido acusado injustamente pela polícia de ter roubado um carneiro e quase morreu depois de ser espancado. “Para mim, ele é produto da época em que viveu. Como era de família pobre, entra no cangaço pra se vingar da surra. Do ponto de vista humano, me chamou a atenção o fato de ele ter sonhado, na juventude, em ser policial. Tentou se alistar, mas, pela estatura e porte físico, não foi aceito. Claro, há outros casos em que você pode classificar como bandido profissional, porque isso também se tornou meio de vida naquela época”, conclui Wolney de Oliveira.
Serviço
Sessão de homenagem aos 30 anos do livro Guerreiros do sol - Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, de Frederico Pernambucano de Mello, com palestra da escritora Anna Maria César.
Quando: 9 de novembro, às 16h
Onde: Academia Pernambucana de Letras (Avenida Rui Barbosa, 1596, Graças)
Informações: 3268-2211
O cangaço foi uma onda de banditismo em um Nordeste de pobreza, violência e falta de poder constituído. Eles eram combatidos pelas Forças Volantes do governo, comandadas por policiais, mas formadas por desempregados do setor rural, fortemente armados.Teve seu fim definitivo com a morte do líder Lampião, em 1938.
Diário de Pernambuco
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