A reportagem é de María Martín e publicada pelo El País, 20-10-2014.
A empresa estatal de saneamento Sabesp, que abastece 60% dos municípios paulistas, continua negando o racionamento. Já para as prefeituras e gestoras dos recursos hídricos dos municípios menores é mais difícil ocultar a falta de previsão e de investimento. Os cortes afetam 38% da população, mais de 15,5 milhões de pessoas, segundo uma pesquisa do Instituto Ibope de setembro.
Nesta maior crise hídrica do último século, EL PAÍS percorreu quatro municípios onde a falta de chuva e a gestão dos recursos determina o cada vez mais angustiado dia a dia dos moradores.
Cordeirópolis: O impopular prefeito da seca
O município de Cordeirópolis, a 160 quilômetros de São Paulo, não vai realizar sua tradicional festa do Rodeio este ano. O prefeito Amarildo Zorzo (PV) precisou escolher entre a dupla sertaneja e os bois ou o combustível que alimenta as bombas de água da cidade. Em estado de calamidade desde junho, a coisa não está para muita comemoração. A água da qual dependem quase 23.000 habitantes, acabará em um máximo de 60 dias.
Quando Zorzo chegou à prefeitura em 2013 descobriu que 50% das contas de água estavam sem pagar, que colégios, ginásios e campos de futebol tinham perdas históricas e que as tarifas do serviço não foram ajustadas durante anos. Em um município seco e cheio de pó, onde cada morador gasta ao redor de 250 litros por dia – a média recomendada pela OMS é de 110 litros – o sistema está próximo ao colapso. Zorzo se converteu rapidamente no que, em qualquer cidade, se classificaria como o anti-político.
Aumentou as tarifas de água, cortou o fornecimento para quem não pagava, decretou o estado de calamidade que lhe dá poder para aprovar decretos e contratar sem precisar passar pela Câmara, começou a multar quem lavasse veículos e calçadas com a mangueira, dividiu a cidade em norte e sul para organizar os cortes e suspendeu a primeira festa. “Já me avisaram que seria um desgaste político. Sem dúvida é, mas tenho escolas, creches e hospitais para abastecer. Eu não me considero um político, tenho que ser um gestor. A situação é extremamente preocupante.”
Cordeirópolis depende hoje de uma reserva que ainda aguenta 30 dias. A fórmula para continuar mais um mês apareceu, quase sem se dar conta, da água que se acumulou durante anos nas já inutilizadas cavas de argila do município. Uma agressão à natureza que, paradoxalmente, se transformou na salvadora de seus detratores.
Itu: À caça do caminhão-pipa
Acaba de cair a noite em Itu e o major da Polícia Militar, Sérgio Kazuuo Abe, pede que os transeuntes se mantenham atrás da viatura.
– Não quero que sejam atingidos por uma pedra
Na sua frente tem uns vinte moradores exaltados do bairro Cidade Nova, que há duas semanas estão tomando banho com canecas. As barricadas se repetem todos os dias, cortam várias vezes uma das principais rodovias da cidade e, embora a maioria dos moradores não esteja de acordo com o método, os protestos violentos colocaram Itu no mapa dos cenários mais cruéis da seca em São Paulo.
Desde fevereiro, a água corre um dia a cada dois, mas no último mês se multiplicaram os casos de famílias, sem recursos nem previsão para se prepararem, que vivem sem uma gota de água. Os moradores peregrinam várias vezes por dia até as torneiras da subprefeitura ou até os canos que trazem água de pequenas nascentes rodeadas de lixo. Os 44 caminhões-pipa do município, que devem ser escoltados pela Guarda Civil para evitar possíveis distúrbios com os moradores, não dão conta.
Noelita Pereira Sobrinho, de 68 anos, saiu da Bahia há mais de 30 anos. Fugia da pobreza que trouxe a seca. “Tinha três filhos que choravam porque não conseguia lavá-los.” A espécie de laboratório, com garrafas e tubos por todos os lados, em que transformou sua casa para que não falte água faz lembrar muito aqueles anos. “Estou passando pela mesma coisa, 33 anos depois. Naquela época era tão difícil quanto aqui. Hoje não posso mais voltar, mas nos dias de desespero não falta vontade”, conta a mulher.
Noelita vive, entre filhos, netos e sobrinhos, com outras cinco pessoas. Depois de duas semanas sem água, os barris se acumulam em cada canto e inventaram um sistema para lavar os pratos. Aprenderam através do Youtube. Juntos não gastam mais de 200 litros de água. A média por pessoa recomendada pela OMS é de 110. “O pior de tudo é ter que carregar água todos os dias, disseram que vão mandar o caminhão-pipa porque protestamos”, diz a aposentada.
Cristais: Ou água ou escola
O motorista do caminhão-pipa vai e volta da poça cinzenta até 15 vezes por dia. Condutor de perua, ele não entende de bombas de água, nem de caminhões e tampouco sabe muito bem como funciona o gerador que permite encher o depósito de 15.000 litros do veículo, mas a situação é tão crítica que a Prefeitura colocou quase todos os motoristas do lugar para levar água até as três pequenas represas do município, em estado de emergência pela seca.
“Se não fizesse isso, a água acabaria”, diz o condutor queimado de sol. As últimas nascentes desta localidade de população envelhecida e floridos flamboyants e ipês amarelos correm por terrenos privados. Seus donos aceitaram que a Prefeitura as usasse para abastecer os 8.000 habitantes que hoje só recebem água durante quatro horas por dia. “Vou ter que suspender as aulas por pelo menos duas semanas. Preciso dos motoristas do ônibus escolar para dirigir os caminhões-pipa. Já estou usando os motoristas do setor de obras e não posso usar os das ambulâncias. Seria o colapso. Além do mais, imagine os gastos de 3.000 crianças nos colégios...”, explica o prefeito Miguel Marques (PSDB).
A única esperança para que Cristais não seque é que o Estado libere 250.000 reais para instalar canos que tragam água que nasce a quatro quilômetros dali. “Esse investimento deveria ter sido feito muito antes”, critica Marques. “A única coisa boa disto, é que a situação abriu os olhos de todos. Inclusive dos administradores, que entenderam que precisam investir nisso”, afirma o responsável de tratar a água do município, Leandro Querino de Souza.
Bragança: O turista só quer água
Os clientes de Sidney Trindade, de 50 anos, desapareceram conforme a água da represa Cantareira foi chegando ao nível mais baixo da história – 3,5% esta segunda –. Proprietário de um complexo turístico que, na época de bonança, alugava 70 chalés e 16 apartamentos para férias e mantinha uma garagem com 210 embarcações, sente um nó na garganta quando faz as contas de tudo que perdeu.
“Os turistas não alugam mais um apartamento nem para passar o dia. Mais de 90% dos meus clientes vinham pela represa”, lamenta. O negócio registra perdas de 70% e trabalha com 1/3 dos 40 empregados que mantinha antes. Hoje, ele se esforça para diversificar o negócio. “Todo o comércio ao redor caiu, os turistas nem vêm mais, somos, sem dúvida, o setor mais prejudicado. Mas ainda é possível se divertir aqui, a mídia também me causou muitos problemas ao mostrar somente a terra seca. A situação está feia, mas ainda há muita água.”
“Por que não impuseram um rodízio?”, se pergunta na frente da minguada represa onde vive há 30 anos. “Não fizeram porque havia Copa e depois eleições, ia ficar feio. Enquanto isso, estão acabando com a água”, lamenta, muito crítico com gestão da Sabesp e o governo de Geraldo Alckmin (PSDB). “Na década de 70 já estava planejada a construção de outra represa que ajudasse esta. Ainda estamos esperando que saia do papel.”
Trindade se emociona quando é perguntado pelo que sente todos os dias ao olhar pela janela. Não chora porque é “muito triste” e é “um homem”, mas sente muita vontade. “Precisamos mostrar ao mundo que isto é importante, precisamos tratar a água com muito mais carinho.”
Fonte: IHU Online
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