domingo, outubro 19, 2014

O moderno, o atraso e a esquerda, artigo de Luiz Werneck Vianna


"A barafunda ideológica em que se converteu a presente sucessão presidencial vem toldando a percepção dessa relevante questão (atraso x moderno), de que o constituinte não se descuidou e nada tem de anacrônica. Ela está aí no tema da Federação, tão pouco discutido, na questão agrária (ainda!), de que se tem passado ao largo, e das populações indígenas e quilombolas. Sobretudo na falta de vínculos dos partidos, notadamente os de esquerda, com os setores sociais ditos retardatários, confiados, no melhor dos casos, à ação tutelar do Estado. Vale notar igualmente, para não ficar sem registro, a distância que os sindicatos de trabalhadores mantêm com a vida popular, entregues a uma pauta meramente corporativa - o tema do sindicalismo tem sido outro ausente dos debates eleitorais", analisa Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 18-10-2014.

Segundo ele, "nada poderia testemunhar melhor a indigência atual da nossa discussão política do que a tentativa de traduzir essa questão capital numa grosseira oposição entre ricos e pobres, como se a política ora em curso fosse inocente quanto ao abismo social e político existente entre eles".

Eis o artigo.

Desde Marx o tema das relações entre o moderno e o atraso é clássico na tradição da esquerda e raiz de fortes controvérsias. Não à toa, uma vez que em sua obra, especialmente em seus artigos políticos, Marx admitiu, respondendo a uma consulta feita por uma destacada liderança dos populistas revolucionários russos, a possibilidade de um salto revolucionário do atraso para o moderno - no caso, das comunas tradicionais (o mir) para o socialismo -, que assim poderia evitar "o cortejo de misérias do processo de acumulação primitiva do capitalismo" de que a Inglaterra seria paradigmática.

No caso, embora reconhecesse como legítima e plausível a questão que lhe era posta, o autor deixava claro que ela não encontraria fundamentação teórica em O Capital, sua opera magna dedicada à investigação do capitalismo em sua forma plenamente desenvolvida, reclamando estudos aprofundados sobre formações sociais de base agrária, como a russa, que ele então pesquisava.

Depois de sua morte, seu legado intelectual foi confiado, primeiro, a Engels, amigo e companheiro de toda a sua vida, e depois a Karl Kautsky, expoente da II Internacional e da social-democracia alemã, cenário bem distinto do russo, com a questão agrária já resolvida por meio de uma modernização pelo alto em favor da grande propriedade fundiária capitalista. Na interpretação de Kautsky, as chamadas forças sociais retardatárias, como o campesinato, não estariam destinadas ao desempenho de papéis ativos na revolução socialista em razão de seus vínculos de origem ao princípio da propriedade privada. Tais forças deveriam contar apenas como aliadas eventuais e temporárias. Caberia ao operariado, organizado em torno de sua vanguarda política, o enfrentamento com o capitalismo, que à medida que se aprofundava como modo de produção operaria como um simplificador da estrutura de classes, opondo em antagonismo radical as forças do capital às do trabalho, estas últimas tendencialmente majoritárias.

A transição para o socialismo seria, nessa versão, obra do moderno e dependente de uma plena maturação do capitalismo, construção teórica escorada em textos do próprio Marx, como no prefácio de 1859 à Contribuição à Crítica da Economia Política, quando sustentou que "nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém". Não importa, como vimos, que, mais tarde, ele tenha valorizado em vários textos o papel das forças retardatárias no processo da revolução socialista, pois seu enunciado de 59 foi elevado a cânon da II Internacional.

A crítica a esse postulado veio dos revolucionários russos, Trotsky e Lenin à frente, que romperam com essa visão linear ao defenderem a teoria de um desenvolvimento desigual e combinado, que implicaria uma nova leitura para as relações entre o moderno e o atraso. Segundo ela, o atraso, longe de se constituir em obstáculo para a revolução socialista, podia se apresentar como uma vantagem, caso de uma aliança operário-camponesa realizada sob a hegemonia do primeiro. Como notório, a criação do primeiro Estado socialista, em 1917, foi filha dessa teoria - um país majoritariamente agrário e de capitalismo inconcluso teria saltado etapas, aproveitando-se de forças da tradição como o campesinato.

O tema das vantagens do atraso correu mundo. O jovem Gramsci, em nome delas, num artigo sempre lembrado, vai saudar a vitória dos comunistas russos como "a revolução contra O Capital" (no caso, a obra de Marx), e as revoluções do século XX nos países de capitalismo retardatário as tiveram como referência. Com a esquerda brasileira, em boa parte de sua história, não foi diferente, embora a partir de fins dos anos 50 tenha cedido em importância à questão nacional.

Nessa reviravolta, a esquerda, então sob majoritária influência do Partido Comunista Brasileiro, optou pelo caminho da modernização do País, que supunha, no contexto da época, uma aliança com o que então se caracterizava como burguesia nacional. Nessa nova equação, "as vantagens", para a esquerda, trocam de lugar: seu eixo passa a gravitar em torno da agenda do moderno, e não mais na do atraso.

O golpe de 1964 desmarcou essa topografia política. O regime militar assumiu como estratégia a captura da agenda da modernização, reeditando, no estilo, em temas e muitos dos antigos personagens, a que foi empreendida por Vargassob a modelagem autoritária do regime do Estado Novo de 1937. Não por acaso, a questão agrária foi compreendida como central pelo regime militar. A derrota política desse regime, com a institucionalização da democracia pela Carta de 1988, sob roupas novas e em cenário radicalmente distinto, nos trouxe de volta a difícil relação entre o moderno e o atraso.

A barafunda ideológica em que se converteu a presente sucessão presidencial vem toldando a percepção dessa relevante questão, de que o constituinte não se descuidou e nada tem de anacrônica. Ela está aí no tema da Federação, tão pouco discutido, na questão agrária (ainda!), de que se tem passado ao largo, e das populações indígenas e quilombolas. Sobretudo na falta de vínculos dos partidos, notadamente os de esquerda, com os setores sociais ditos retardatários, confiados, no melhor dos casos, à ação tutelar do Estado. Vale notar igualmente, para não ficar sem registro, a distância que os sindicatos de trabalhadores mantêm com a vida popular, entregues a uma pauta meramente corporativa - o tema do sindicalismo tem sido outro ausente dos debates eleitorais.

Nada poderia testemunhar melhor a indigência atual da nossa discussão política do que a tentativa de traduzir essa questão capital numa grosseira oposição entre ricos e pobres, como se a política ora em curso fosse inocente quanto ao abismo social e político existente entre eles.

Fonte: IHU Online

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