domingo, agosto 31, 2014

São Francisco, rio da divisão social

Transposição do São Francisco separa e fragiliza comunidades indígenas e quilombolas, segundo pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz

O Rio da Integração Nacional, como o São Francisco ficou conhecido por ligar o Sudeste ao Nordeste do Brasil, pode se transformar em rio da divisão social depois de concluídas as obras da transposição das águas, iniciadas em 2007. Um projeto desenvolvido por pesquisadores do Departamento de Saúde Coletiva da Fundação Oswaldo Cruz para analisar os impactos sociais e ambientais causados por esse megaempreendimento mostra que populações vulneráveis estão sendo separadas pelos canais em construção. Na última semana, quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais relataram esse e outros efeitos nocivos numa oficina realizada pela Fiocruz para troca de experiências.

Responsável pelo evento, o coordenador da pesquisa Estudos Ecossistêmicos dos Territórios e Populações Vulnerabilizadas na área de Abrangência do Projeto de Integração do Rio São Francisco,André Monteiro, explica que o problema está na forma de condução do projeto. “Não existe diálogo adequado entre o Estado e esses grupos tradicionais. Eles só são ouvidos para serem convencidos a aceitar ações que já estavam pré-definidas”, afirma. O grupo montou uma base de dados de 86 municípios que serão afetados pela obra. O levantamento é financiado pelo CNPq.

Segundo André Monteiro, que há dois anos vem visitando essas áreas, o conjunto de ações previstas nos projetos de mitigação dos impactos ambientais e sociais – são 38 – têm sido insuficiente para dar resposta ao processo de enfraquecimento dessas populações. “O Estado produz estratégias de desenvolvimento, mas não dá conta dos problemas que surgem”, avalia.

Os efeitos colaterais são muitos. Responsável pela obra, o Ministério da Integração Nacional contratou entidades e consultorias de engenharia para implantar programas básicos ambientais. Também fez um convênio com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para construção de casas de alvenaria em substituição às de taipa, usadas por indígenas e quilombolas. O produto final foi reprovado pelo público-alvo.

“Nossas casas eram grandes, para caber toda a família. As novas são tão pequenas que muita gente teve que se desfazer do pouco que tinha para poder morar nelas. E para ganhar essa casa, ainda foi preciso derrubar a antiga”, conta Francisca Ivaneide de Souza, da Associação Quilombola de Contendas, em Salgueiro, Sertão. Ela conta que a construção dos canais por onde a água do rio vai passar também afetou a criação de animais. “Muitos morreram atropelados ou fugiram com as explosões”, relata

Para a comunidade indígena Pipipã, de Floresta, o impacto foi ainda maior. O canal está sendo construído antes da demarcação das terras da tribo – atualmente, esses índios vivem no território Cambiuá – pela Funai. “Ele vai cortar nossas terras de uma ponta a outra. Vamos ficar isolados. Não sei como será o acesso de um lado a outro depois da obra ficar pronta”, reclama Paulo Pipipã. Ele informou que cerca de 30 quilômetros já foram construídos. “Infelizmente, o canal vai passar justamente na área histórica para nós, onde nossos antepassados faziam rituais, caçavam e coletavam mel de abelhas.”

As casas de taipa, destinadas às práticas religiosas e culturais dos índios, também foram derrubadas antes que outras fossem construídas no lugar. “Ao longo da história, as obras sempre foram conduzidas assim no Brasil. Precisamos parar com essa forma de lidar com grupos que já são vulneráveis e que, em processos assim, ficam ainda mais fragilizados”, ressalta André Monteiro.

Jornal do Commercio

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