domingo, agosto 24, 2014

O retrato do 'Velho' está lá


Saindo da vida com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas entrou para a história como a principal figura política do século XX no Brasil. Alternadamente, sua imagem é citada como carga a superar e tradição a resgatar: em 1994, Fernando Henrique Cardoso, presidente eleito, afirmou que o momento de sua posse representava o fim da "era Vargas" no Brasil. Em 2010, a então candidata presidencial Dilma Rousseff afirmou que o governo Lula era a continuidade de Getúlio, durante convenção do PDT, partido fundado pelo getulista Leonel Brizola.

A reportagem é de Diego Viana, publicada pelo jornal Valor, 22-08-2014.

A "terceira morte de Vargas" foi o termo que o cientista político Bolívar Lamounier escolheu, em artigo publicado em 1994, para referir-se à liberalização dos mercados, que abalou a estrutura protecionista da economia brasileira. A primeira morte de Vargas foi, naturalmente, seu suicídio, acossado pelas acusações de participação no atentado ao seu adversárioCarlos Lacerda (1914-1977). A segunda, o golpe de 1964, que derrubou seu herdeiro político João Goulart (1919-1976).

No entanto, ao mesmo tempo em que o chamado "getulismo" ou "varguismo" é uma página difícil de virar, os traços de sua permanência no Brasil contemporâneo podem ser difíceis de notar e provocam leituras díspares. "O único lampejo de getulismo em Dilma é remoto: crer que o Estado deve ser uma alavanca forte que impulsione setores. Isso corresponde a 10% do que foi o getulismo", afirma Ricardo Antunes, professor de sociologia na Universidade Estadual de Campinas(Unicamp).

Uma das prioridades do segundo governo de Getúlio, iniciado em 1951, era a modernização da infraestrutura econômica do país, privilegiando os setores energético e de transportes. Sua gestão era baseada no nacionalismo, dirigismo estatal e aproximação com o capital estrangeiro.

A ambiguidade do personagem Getúlio se reflete em sua trajetória: de líder revolucionário oposto às velhas oligarquias a ditador que garantiu a sobrevivência dessas mesmas oligarquias. De proprietário de terras exilado em São Borja (RS) a presidente eleito pelo voto direto. De chefe de Estado acuado por acusações de corrupção a mártir sepultado em cerimônia apoteótica.

"O que chamamos de varguismo é o Brasil que conhecemos, a ordem burguesa no Brasil. É por isso que superar a figura de Vargas é tão difícil", diz o sociólogo Adalberto Cardoso, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). "O que Getúlio fez foi consolidar o capitalismo no Brasil: construir as instituições centralizadas de controle que o fazem funcionar." Com todas as alterações que sofreram, essas instituições ainda marcam o funcionamento e as contradições do capitalismo à brasileira.

"O que está sendo feito de concessões, a transposição do rio São Francisco e projetos semelhantes têm um aspecto varguista no sentido de que são políticas de Estado, um Estado que prefigura coisas que os agentes privados não podem prefigurar", diz Cardoso. Para ele, a ideia central é que quem tem de pensar no longo prazo é o agente político. "O Estado é, em princípio, quem tem essa capacidade. É isso que significa varguismo."

Alexandre Saes, historiador econômico da Universidade de São Paulo (USP), busca nuançar a convicção de queGetúlio se caracterizava por uma forte preferência pelo polo estatal da dicotomia entre Estado e mercado. Argumenta que novos estudos mostram como o presidente buscou financiamento e apoio do capital estrangeiro. "No período em que a decisão de Vargas pelo desenvolvimento passava pela intervenção do Estado e a criação de empresas estatais, ele agia assim porque não havia outras opções", observa. "Qualificar o desenvolvimento brasileiro como varguista me parece uma forma de estigmatizar ou colocar a ideia de desenvolvimento de maneira pejorativa."

Dois lados do legado getulista são citados como determinantes para entender o Brasil de hoje. Primeiro, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, que regula o sindicalismo e ainda rege a maior parte das relações entre patrões e empregados no país. Em seguida, o esforço para acelerar a industrialização, com a formação de uma classe empresarial de capital brasileiro e a presença forte do Estado na economia. São reflexos desse ativismo econômico, entre outras, empresas como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fundada em 1941 e privatizada em 1993, e a Petrobras, fundada em 1953 e detentora do monopólio de extração de petróleo até 1997.

As novas empresas estatais do governo Dilma, como a Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) e a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), suscitam lembranças do dirigismo getulista. Para Cardoso, porém, há diferenças fundamentais entre as duas iniciativas. "O Brasil nos tempos de Getúlio era dependente da oferta internacional de petróleo. O que Getúlio fez foi mandar furar o país inteiro atrás de petróleo." Na visão do sociólogo, a política atual para o pré-sal é diversa, porque "corresponde a achar um tesouro no fundo do mar e garantir que ele renda para o país".

Para Cardoso, o vínculo estreito entre a classe empresarial e o Estado, no Brasil, como produto do getulismo, federações e confederações, como Fiesp, CNI e Febraban, são instituições de representação patronal que introduzem o empresariado no aparelho de Estado, participando da formulação de políticas públicas.

A Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952, criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), uma das mais expressivas agências de fomento do Brasil, que no governo Dilma, já BNDES (com a inclusão da palavra social), promoveu um crescimento impressionante na economia, ao oferecer empréstimo a centenas de milhares de empresas. No governo Fernando Henrique, porém, o BNDES facilitou as privatizações e deu agilidade ao Estado.

Numa primeira fase, o BNDE investiu muito em infraestrutura, mas a criação de estatais aos poucos liberou o banco para investir mais na iniciativa privada e na indústria. Durante os anos 60, o setor agropecuário e as pequenas e médias empresas passaram a contar com linhas de financiamento do BNDE. Em 1964, o banco já descentralizava suas operações, abrindo escritórios regionais em São Paulo, Recife e Brasília. Além disso, passou a operar em parceria com uma rede de agentes financeiros credenciados espalhados por todo o Brasil.

No entanto, ainda que o golpe de 1964 tenha sido desferido contra um governo herdeiro de Getúlio, aos poucos foi sendo reapropriado o protagonismo do Estado. "Se, por um lado, a ditadura preservou a estrutura estatal, por outro ela alterou o peso do tripé que sustentava a economia: capital estatal, capital privado nacional e capital externo", diz Antunes, daUnicamp. "A ditadura inflou a parte do capital externo, que se tornou o pé mais importante."

Um ponto que mina a lógica e o comportamento getulistas é a internacionalização da economia, que, nas palavras deAntunes, "acentua a simbiose entre a burguesia nacional e o capital internacional", apagando uma polaridade em que se situava Getúlio, defensor dos interesses da burguesia nacional contra os setores ligados à economia internacional. "Hoje não existe mais aquela burguesia nacional sólida. Mesmo os setores mais nacionais estão profundamente vinculados à economia globalizada e financeirizada", afirma.

Houve um momento, no Brasil, em que ou o Estado investia, ou não haveria investimento nenhum, analisa Cardoso. "Não havia agentes econômicos suficientemente fortes para investir, por exemplo, em infraestrutura." Esse foi o momento varguista, em que o Estado, único agente capaz de endividar-se, recorreu a uma poupança externa então abundante para criar as condições de uma economia de mercado no Brasil.

A crise da dívida nos anos 1980, avalia Cardoso, eliminou a capacidade estatal de investimento, deixando o país 15 anos sem melhorias de infraestrutura. Só na década de 1990, já no governo Fernando Henrique, essas inversões seriam retomadas, mas com protagonismo do capital internacional e recorrendo a privatizações. "Esse foi um outro momento de recurso à poupança externa, mas sem a intermediação do Estado", afirma.

A situação atual, com concessões de serviços públicos, seria diferente, porque boa parte da infraestrutura que havia para privatizar já foi privatizada. "Hoje, concede-se onde a necessidade de investimento é maior que a capacidade estatal ou então porque o Estado perdeu a capacidade de investimento como resultado dos mecanismos de controle, que tornam o gasto público ineficiente." O sociólogo cita o exemplo da Lei nº 8.666, que regula as licitações e impõe barreiras à ação direta do governo.

Para Saes, a presença da imagem de Getúlio é reflexo da permanência de um embate mais amplo sobre modelos de desenvolvimento econômico. "A saída para melhorar as condições econômicas do país deve ser por meio da especialização produtiva? Devemos nos especializar em ramos em que temos grande competitividade, como o setor agroexportador, ou devemos buscar a diversificação produtiva, mais preocupados em atender ao mercado interno com maior complexidade de nossa estrutura econômica?" O economista põe em dúvida o caráter varguista dessa segunda problemática, lembrando Juscelino Kubitschek e Celso Furtado.

Se as leis do trabalho são a ponta mais visível do legado de Getúlio, neste ano elas estiveram no centro das atenções. O sindicalismo tradicional foi alvo de uma série de greves ocorridas no Rio e em São Paulo. Nesses episódios, que envolveram setores como transporte público e limpeza urbana, trabalhadores dissidentes mantiveram paralisações à revelia dos sindicatos de suas categorias. Segundo Cardoso, essas greves refletem uma modificação nas leis trabalhistas passada durante o governo Lula, em 2008, quando as centrais sindicais passaram a receber 10% da arrecadação do imposto sindical. "Isso gerou uma competição sem precedentes por lealdade dos sindicatos existentes, além de incentivar a criação de uma miríade de novos sindicatos", nota.

Cardoso cita também o financiamento, pelas centrais sindicais, de oposições no interior dos sindicatos menores, na esperança de alterar a filiação de uma determinada categoria e fortalecer-se na disputa dos repasses. "Mas o que surpreende é que não haja mais greves dissidentes. Significa que, na maioria dos sindicatos, as direções ainda mantêm o controle sobre as bases", diz.

José Álvaro Moisés, cientista político da USP, ressalta que já no surgimento do Novo Sindicalismo do ABC paulista, na década de 1970, os aspectos da CLT relativos à estrutura sindical eram postos em questão. O traço mais forte do legado varguista no Brasil de hoje é a estrutura corporativista dos sindicatos, incluindo sua dependência do Estado, observaMoisés. "Sindicalismo de resultados é diferente de sindicalismo ideológico, como sindicatos socialistas são diferentes de comunistas e democrata-cristãos. Mas a escolha não existe para o trabalhador do Brasil." Moisés destaca também que a cúpula do sindicalismo brasileiro continua, como na era Vargas, ligadas ao governo, recebendo recursos diretamente repassados pelo Estado. "E não tem controle do Tribunal de Contas."

"A CLT é a principal herança de Getúlio, quando pensamos nas classes populares", diz Antunes, para quem os trabalhadores reconhecem nas leis trabalhistas uma espécie de constituição, ao garantir direitos que estão sendo erodidos em outras partes do mundo. A ambiguidade do legado da CLT está em seus efeitos quase opostos sobre o dia a dia do trabalhador por um lado e, por outro, o sindicalismo. "No plano dos direitos do trabalho, a CLT foi um avanço, mas no direito sindical foi, no mínimo, controversa. Principalmente ao preservar o imposto sindical, que é nefasto."

O jingle da campanha para presidente de Getúlio Vargas em 1950 pedia que se recolocasse o "retrato do velho", referindo-se ao próprio Getúlio, de volta à parede do Palácio do Catete. "O sorriso do velhinho faz a gente trabalhar", dizia a canção, expressando o carisma pessoal que o outrora ditador detinha entre os trabalhadores. O "pai dos pobres" obteve muitos de seus sucessos políticos graças à capacidade de mobilizar as multidões.

O poder do getulismo deriva de sua capacidade de travestir medidas de modernização capitalista como presentes do líder para os pobres, para Antunes. "Existe o mito de outorga, de dádiva, do Estado benfeitor, que Getúlio soube conduzir e encarnar muito bem", afirma o sociólogo. "Avanços como as leis do trabalho foram fruto de uma enorme pressão dos trabalhadores, mas a genialidade política de Getúlio estava em fazer parecer que era um presente que partia dele." O traço personalista e populista do getulismo está sendo aos poucos depurado da política brasileira, aponta Moisés. "Os eleitores demandam cada vez mais dos partidos e dos candidatos a definição de suas posições programáticas. Isso está aumentando, embora em muitos pontos ainda vejamos esse lado personalista, típico do período getulista."

Por outro lado, a força da figura do presidente da República na Constituição de 1988 parece a Moisés ser um traço da sobrevivência da herança varguista. "Com tantas prerrogativas de propor legislação, editar medidas provisórias e comandar o orçamento da União, o presidente do Brasil é um dos mais fortes do mundo", afirma. "Isso remonta a Getúlio, porque expressa a ideia de que a figura do Estado tem grande protagonismo."

Lembrar o legado getulista é mais do que celebrar uma efeméride, é entender uma referência histórica. "Getúlio Vargas é um repositório, no qual alguns atores políticos e econômicos do Brasil vão buscar inspiração."

Veja também:
A reinvenção da Era Vargas e o desenvolvimento nacional. Entrevista especial com Carlos Lessa

Fonte: IHU Online

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