terça-feira, janeiro 07, 2014

O direito de morrer com dignidade - Artigo de Vicenç Navarro

Muitos somos os que vimos pessoas muito queridas que, devido à doença que tinham, tiveram uma morte longa, penosa, dolorosa e humilhante. E era a própria pessoa que estava morrendo que desejava morrer o mais cedo possível, ir sem pena e sem dor, e sobretudo, com dignidade. E, ao contrário, era muito pouco o que o doente e seus familiares podiam fazer para ajudar-lhe. A lei não permitia.

A maior razão disso é um preconceito religioso que, como no caso do aborto, fala da santidade da vida, sem ser sensível ao significado e qualidade de dita vida. Está, como todo sentimento religioso, baseado em fé, em crenças, e escapa a qualquer raciocínio. E é um indicador a mais do enorme poder da Igreja e de sua influência negativa na cultura popular que tal possibilidade sequer tenha sido considerada pelos chamados representantes da população.

Não é necessário dizer que é um tema complexo, pois pode dar lugar a abusos, ou seja, que este direito seja utilizado pelos familiares ou pessoas próximas ao doente como maneira de aliviar seu próprio desconforto, acrescentando pressão ao doente para que assine e dê seu consentimento para que lhe ajudem a morrer.

Mas há mecanismos e regulações que podem diminuir a possibilidade deste abuso, adquirindo, por exemplo, a autorização em um momento de maior normalidade, no qual o paciente possa decidir em uma situação menos estressante ou, inclusive, quando não esteja doente em fase terminal.

Assim se está fazendo em quatro Estados dos EUA: Oregon, Washington, Vermont e Montana. E a popularidade de dita medida explica porque outros Estados estejam considerando aprovar leis semelhantes. A intervenção pública permitindo a morte assistida por pessoal sanitário se chama Death with Dignity Act (lei do direito de morrer com dignidade), e está se estendendo ao longo dos EUA. Isso é um indicador da perda de influência das religiões na sociedade. Na verdade, tem sido a constante das religiões, e muito em particular das igrejas cristãs (e mais concretamente da Igreja Católica) o valorizar a dor como instrumento de redenção e purificação, concepção que adquire maior contundência no processo do final da vida, caminho – segundo ditas religiões – ao outro mundo, onde se desenvolve a plena realização daquele ser. Tal crença tem que ser respeitada por mera coerência democrática.

Qualquer cidadão tem o direito de praticar sua religião, segundo os cânones que marcam sua igreja. Agora, este mesmo cidadão não pode impor suas crenças ao resto da sociedade, tal como as igrejas desejam e muito em particular a Igreja Católica espanhola que, tradicionalmente, tem uma relação privilegiada com o Estado espanhol, tanto durante os períodos ditatoriais como nos escassos períodos democráticos que a Espanha teve em sua história.

A Igreja Católica espanhola não apenas não é um instrumento democrático, senão antidemocrático, posto que nunca aceitou que suas crenças são particulares (ou seja, deveriam afetar apenas seus crentes) e não universais (ou seja, que se apliquem a toda a população).

E a direção ultrarreacionária da Igreja Católica que foi, durante a ditadura, parte do Estado fascista (os clérigos eram pagos pelo Estado e os bispos nomeados pelo ditador), nunca aceitou que suas crenças e sanções não devem transformar-se em políticas públicas em um sistema democrático. Fazê-lo, como está acontecendo na Espanha, é de uma enorme insensibilidade democrática, além de uma grande crueldade e inumanidade. Negar o direito de morrer sem dor e com dignidade às pessoas como consequência de um mandato de seu Deus é delegar a governança de um país a um poder terreno não democrático que utiliza um poder supostamente divino (que ninguém elegeu) para controlar a população. Tem sido um grave erro o excessivo respeito e docilidade mostrados pelas esquerdas às imposições de um poder fático que provocou tantos danos e continua danando a população, e tudo isso em nome de seu Deus.

Fonte: Carta Maior
Vicenç Navarro é professor catedrático de Políticas Públicas, na Universidade Pompeu Fabra, na Universidade John Hopkins. (Artigo publicado originalmente em Público.es, 01.01.2014).

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