domingo, janeiro 26, 2014

Minha amiguinha Beatriz - Crônica de Abdias Moura


MINHA AMIGUINHA BEATRIZ
Abdias Moura

Conheço muito caso de avô que se diverte brincando com as netinhas. Eu mesmo, quando Mirela - primogênita de meu filho Helder - cresceu um pouco, saí algumas vezes com ela, mal começando a falar, para ver a decoração de Natal, entre o Recife e Olinda, ou até para ver os animais no zoológico de Dois Irmãos, ou tomar banho de mar na praia de Boa Viagem. Ambos gostávamos dos passeios, ainda que tenham sido poucos.

Naquele tempo, eu estava no auge dos meus quarenta anos e tinha energia bastante para aguentar os trancos de uma menina saudável.

O que vou contar agora é diferente. Hoje, com o dobro daquela idade, uma das minhas amigas é Beatriz, uma menina de três anos, primeira neta de Tereza, minha esposa.

Conheci Beatriz ainda na maternidade em que ela nasceu. Parecia uma criancinha como outra qualquer. Aliás, nunca fui de achar os recém-nascidos sempre “bonitinhos”, nem perceber nos meninos “a cara do pai”. Eu estava ali, simplesmente, fazendo companhia à avó materna e em homenagem à parturiente, Manuela (sua única filha), que havia morado comigo desde os quinze anos, quando me casei pela segunda vez. Sempre nos demos muito bem, talvez até porque nunca tentei assumir o lugar do seu pai, a quem ela ama intensamente. 
 
Nos meses seguintes, quando Beatriz começou a ser levada pela mãe ao meu apartamento para visitar a avó, notei que me olhava sempre com muita atenção, talvez por ser o único do grupo familiar que tinha os cabelos inteiramente brancos. Mas, passando de braço em braço, nunca aceitou que eu a carregasse, nem por um instante.

Cheguei a comentar isso com um amigo, kardecista, quando Beatriz já completara um ano, e ele me veio com uma tentativa de explicação para mim pouco convincente, falando de outras encarnações e coisas tais. Deixei passar o tempo, curioso para ver o que aconteceria quando ela crescesse.

A reviravolta se deu depois que Beatriz começou a falar, antes mesmo de completar dois anos. Então, aproximou-se espontaneamente de mim. Começou dizendo o meu nome e aos poucos iniciamos nossa amizade. Uma coisa notável: ela nunca me tratou como a uma pessoa mais velha (como faz com os avós e mesmo com os pais), mas como se eu fosse um companheiro de brinquedos, da mesma idade dela. Claro que, menina inteligente, sabe que eu sou de maior tamanho, podendo inclusive carregá-la dos braços, quando está cansada. Mas o diálogo foi sempre de igual para igual.

Às vezes, a diferença de tempo vivido me traz algum problema. Na primeira vez em que isso aconteceu, ela se sentou no chão, com vários brinquedos, e mandou que eu fizesse o mesmo. Tudo bem: obedeci e, com algum esforço, me coloquei no mesmo plano dela. Mas, pouco depois, ela resolveu se levantar e quis que eu também ficasse de pé. Com certa dificuldade, segui sua orientação, mas eis que resolveu sentar novamente no chão. Aí, já era muito para mim, este “senta-levanta”. Sentei-me, sim, mas numa cadeira, e procurei fazê-la entender que me custava estar a todo momento a mudar de posição. Ela entendeu, e continuamos brincando, sempre sob a sua liderança.

De outra feita, notando mais uma vez que eu tinha certa dificuldade em baixar-me, agora para apanhar alguma coisa no piso da sala, comentou, preocupada:

- Abdias, você está muito fraco, precisa comer mais...

Não discuti, apenas prendi o riso, pois ela não suporta que alguém sorria de suas opiniões, caso em que fica realmente zangada.

Antes mesmo desses dois episódios, ela me perguntou certo dia por que eu tinha cabelos brancos. Na realidade, eu os tenho assim desde muito jovem, mas para simplificar a resposta disse:

- Porque fiquei velho. Quando se fica velho, o cabelo se torna branco.

No dia seguinte (soube depois) ela empurrou com o corpo sua irmãzinha de um ano, ao que a mãe advertiu:

- Tenha cuidado! Ela é pequena. Você é a irmã mais velha...

E Beatriz, chorando:

- Eu não quero ser mais velha, não quero!

- Por quê?

- Abdias me disse que quando se é velho, o cabelo fica branco. E eu não quero ter cabelo branco!

É assim a minha amiga Beatriz. Mas o que me admira nela é que mistura momentos de infantilidade com outros em que parece uma pessoa madura. Assim foi, por exemplo, no momento em que lhe mostrei uma montagem fotográfica preparada por minha mulher, em que eu e Tereza estamos no centro do quadro, rodeados pelos nossos filhos, noras e genros. Beatriz olhou muito atentamente e fez o seguinte comentário:

-Fiquei muito feliz, Abdias, vendo este quadro.

- Por quê? – perguntei, só para provocá-la. Resposta imediata:

- Porque você não esqueceu meu pai e minha mãe.

Geralmente, ela reage situações novas como fariam pessoas maduras de bom senso. Mas também se aborrece como adulto mal educado, quando se julga ofendida. Por exemplo: se está tentando dizer alguma coisa e nota que os interlocutores estão falando sobre outro assunto, sem lhe prestar atenção, é capaz de dizer coisas assim:

- Silêncio! Ou então vou embora desta casa, e não volto nunca mais.

No dia em que eu me sentara numa cadeira, deixando-a sozinha no chão com seus brinquedos, ela se deitou por alguns instantes, de costas, com os olhos fechados. Pousei ligeiramente um pé no seu corpo e ela me repreendeu, como uma mãe rigorosa:

- Não faça mais isso. Nunca mais! Vai ficar de castigo, sentado nessa cadeira, até eu mandar sair.

Como eu já estivesse sentado, assim fiquei por algum tempo. Mas logo resolvi me levantar, antes que ela julgasse que eu estava mesmo cumprindo sua ordem. Não houve novo protesto, dessa vez.

No seu primeiro ano de vida, a mãe a deixava em minha casa, apenas, por algumas horas, durante o dia. A primeira vez em que dormiu com a avó (nós três, numa cama de casal bastante larga), foi em seguida ao nascimento de sua irmãzinha, Giovanna.

Eu sempre soube que os primogênitos sentem ciúme do primeiro irmão, mas não havia ainda testado, até aquela noite, esse sentimento que parece negativo. Ali, sim, ele apareceu em sua face mais oculta. Explico.

Vinha o dia nascendo, já estando eu e minha mulher acordados, mas ainda deitados, quando Beatriz se acordou. Ainda meio sonolenta, disse à avó:

- Eu caí por cima dela. Ela chorou muito.

- Ela quem? – perguntou Tereza.

- Aquela menina – responde Beatriz.

- Como é o nome da menina?

- Giovanna!

Eu havia comprado o livro comemorativo do centenário de publicação de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud. A maior importância que dou a esse autor não é pelas descobertas no campo da psicanálise, mas pelo seu valor como escritor literário. Poucos autores, no mundo, escreveram tão bem quanto ele.

Ao me levantar da cama, naquele dia, procurei o volume que havia comprado na véspera, abrindo, por puro acaso, exatamente no capítulo intitulado “O sonho é a realização de um desejo”. E fui lendo, apressadamente, ao tempo em que passava de uma página para outra:

“Aprendemos que um sonho pode representar um desejo como realizado ( ...). O sonho das crianças pequenas são frequentemente pura realização de desejos e são, nesse caso, muito desinteressantes se comparados com os sonhos dos adultos. Não levantam problemas para serem solucionados, mas, por outro lado, são de inestimável importância para provar que, em sua natureza essencial, os sonhos representam realizações de desejos (...) que tiveram de ser satisfeitos num sonho”.

Pode-se discordar de Freud. Mas, neste caso, a interpretação do sonho foi confirmada, dias depois, pela própria Beatriz. Tendo viajado num fim de semana com os pais e a irmã para Maceió, ao final da viagem Manuela lamentou que Giovanna estivesse dormindo profundamente, na hora combinada para o retorno. Minha amiguinha sugeriu:

- Mamãe, a gente volta com papai e deixa essa menina dormindo no hotel.

Beatriz começou a frequentar escola muito cedo, com apenas dois anos de idade. Vai diariamente para a aula, no Colégio Salesiano, cumpre uma rotina de brincadeiras e recebe noções de sociabilidade e disciplina. Usa, para isso, roupa escolar, com short e blusa.

Quando vai passear, porém, é muito exigente com roupas e sapatos. Claro que a mãe, sempre elegante, é em parte responsável por isso, como também os avós e outros parentes ou amigos. O fato é que, ao chegar a minha casa, sempre exibe os vestidos (cada vez, um novo) e sapatos, ou sandálias.

Um dia destes, estava em minha casa quando a mãe veio buscá-la para almoçar num restaurante. Ela comentou:

- Eu estou com roupa simples. Dá para almoçar assim num restaurante?

Aliás, seu mundo é povoado de rainhas (boas e más), príncipes encantados e fadas. Comprados e lidos em voz alta pela avó, penso que conhece os principais contos de Anderson e dos irmãos Grimm, talvez os de Perrault. Não sei até que ponto Beatriz sabe distinguir fantasia de realidade, Adora vestir-se como se fosse uma princesa.

E gosta de sonhar acordada.

Numa manhã de sábado, estava comigo no jardim em torno do edifício em que moro, quando uns passarinhos que se abrigavam em árvores no terreno vizinho levantaram vôo. Ela os olhou atenta e disse:

- Eu queria voar até as nuvens. Você vai comigo?

- Mas nós não temos asas – expliquei. - Só podemos voar de avião.

Ela concordou com a cabeça e mudou de assunto.

Dias depois, estando no interior do apartamento, deitou-se na rede que mantenho armada em meu gabinete de estudos. A seu pedido, eu a balancei. Então, abrindo os braços e fechandoos olhos, exclamou:

- Eu sou um passarinho. Estou voando nas nuvens. Quer voar comigo?

Noutra manhã, sendo domingo, eu é que fui a casa de seus pais. Encontrando-a sozinha com a irmã e a mãe, perguntei a ela o que o pai estava fazendo àquela hora. Respondeu: - “Trabalhando”.

- Ele trabalha muito, não acha? – E ela explicou:

- É para ficar rico. Se ele ficar rico, mamãe também fica. E eu também.

Notei que, depois dessa explicação, Beatriz aproximou-se da mãe. Soube que minha amiguinha perguntou a Manuela:

- O que é mesmo ficar rico?

A mãe simplificou a resposta:

- Ficar rico é não precisar mais trabalhar para comprar roupa, almoçar em restaurante e viajar.

Então, Beatriz meditou um pouco e concluiu:

- Então, eu já sou rica!

Mas há outra passagem ainda melhor, para explicar como é pretensiosa. Alexandre aos fins de semana gosta de jogar tênis. E quando acompanha as partidas internacionais pela televisão, Beatriz fica ao seu lado, sempre muito atenta. Algumas vezes, chega a elogiar uma ou outra jogada dos grandes tenistas mundiais.

Outro dia, em minha casa, o pai chegou de um torneio local, com a taça de campeão. Depois de abraçá-lo, olhou para mim, e explicou, muito séria:

- Esse jogo é com as mãos, não os pés. E eu sou a técnica dele.

Resolvi cortar o seu barato:

- Como técnica, se você nem vai aos jogos?

Beatriz replicou:

- Não vou a jogo, mas dou muitas dicas a ele.

Insisti:

- Pensei que sua mãe é quem dava as dicas...

E ela, sem se intimidar com minha implicância:

- Mamãe é a minha assistente.

Noutro dia, ela me convidou a brincar de João e Maria. Respndi:

- Sim, Beatriz. Mas me diga o que devo fazer.

Ela de pronto desistiu da idéia, e se saiu com esta:

- Não adianta, você não sabe mesmo... Era para responder: “Sim, Maria”...

Não sei como ela se comportou nos primeiros dias de colégio, mas senti depois que gosta muito do ambiente escolar, tem três coleguinhas preferidas e ama, sobretudo, as aulas de balé.

Recentemente, em minha casa, fez algumas demonstrações de suas habilidades para a dança. Para isso, pediu à avó que pusesse uma música no aparelho de som (no meu tempo de jovem, seria pôr o disco na radiola). Quando ouviu uma canção popular, reclamou:

- Essa, não! Ponha uma música clássica...

Atendida, ficou nas pontas dos pés, dançou longamente e, ao final, baixou a cabeça, à espera de aplausos.

Não apenas bati palmas, como me aproximei dela e perguntei:

- Então, você vai ser uma bailarina, quando crescer?

Com o rosto muito sério, ela me corrigiu:

- Quando crescer, não, Abdias. Eu já tenho sapatilhas e roupa de balé. E já sei dançar.

Não me foi difícil perceber que tinha razão em se considerar uma bailarina. Havia, dias antes, se apresentado, com suas coleguinhas de idade semelhante, recebendo aplausos de um público variado, na entrada do shopping Alfândega, no bairro do Recife Antigo; e, dias depois, no palco do teatro da Boa Vista, com o auditório lotado pelos pais e avós dos alunos de diferentes turmas do colégio em que estuda.

Ainda na educação infantil, Beatriz gosta de brincar com letras e, aos três anos, começa a escrever algumas palavras. Quando me chama para ser parceiro de suas brincadeiras, tanto pode escolher um jogo de bola com as mãos (raramente usa os pés), uma arrumação de panelas para fazer um bolo, ou pede papel em branco, para desenhar com minhas canetas coloridas. Em geral, usa a mão esquerda, embora às vezes me atenda e escreva com a direita.

Mais de uma vez, embora sabendo que não está ainda na idade da alfabetização, desobedeci a orientação recente dos pedagogos e a fiz brincar de escrever letras, ou números. Ora, isso deu certo, quase meio século atrás, com meus filhos Walter e Márcio, que começaram a ler antes mesmo de entrar na escola, por que não poderia ser aplicado com Beatriz? Fiz umas três experiências nesse sentido.

Um dia desses, tendo ela visto em minha casa o catálogo telefônico de bolso editado anualmente pelo cronista João Alberto, do Diario de Pernambuco, olhou-o atentamente, como se estivesse lendo. Depois que o largou, eu o apanhei e abri na primeira página, mostrando:

- Olhe aqui: este é o A, de Abdias.

Ela o segurou novamente e, passados alguns momentos, me surpreendeu, dizendo:

- Achei!

- O que é que você achou? – perguntei.

- Aqui está o B, de Beatriz – foi a sua resposta.

E, não satisfeita, um tempo depois:

- E este é o T, de vovó Tereza.

Dias depois, na comemoração do Natal de 2013, ela passou por meu apartamento, com os pais, mas não demorou muito. A festa seria na residência do avô paterno, um casarão moderno, em Olinda. Ao se despedir, me disse que iria ganhar uma bicicleta. Como já tem um triciclo, eu a animei:

- Deve ser uma bicicleta bem grande!...

Mas ela, esbanjando bom-senso:

- Não. eu sou pequena. A bicicleta deve ser pequena, também...

Assim é a minha amiguinha Beatriz, perto de completar quatro anos de idade.