É no campo da cultura que se vê, de forma mais brutal, a deposição de toda e qualquer aspiração crítica e contestadora de certa esquerda brasileira. Fala-se em "quebra de paradigma", mas o Ministério da Cultura apenas implementa o paradigma, cada vez mais hegemônico, de indistinção geral entre arte, entretenimento e mercadoria", escreve Vladimir Safatle, professor de Filosofia, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 03-09-2013.
Segundo ele, "afinal, há de chamar de 'gato' um gato. Estilistas são, acima de tudo, comerciantes donos de loja que organizam sua produção a partir da sensibilidade às demandas de mercado e a exigências de máxima rentabilização de seu capital. Mas grupos de teatro não são empresas, escritores não são comerciantes e um quadro não é uma mercadoria, mesmo que tenha um preço".
Eis o artigo.
Diante da repercussão a respeito da decisão de permitir que estilistas financiassem desfiles de moda por meio da Lei Rouanet, o Ministério da Cultura procurou se defender.
Usando um raciocínio eminentemente estratégico, em que as palavras de ordem são a importância econômica da cultura e seu papel na ampliação do poder do Brasil no jogo internacional, o MinC acabou por demonstrar a rendição final da política cultural brasileira aos argumentos do mais crasso economicismo.
Primeiro, ninguém discute que, de uma certa forma, moda é cultura, assim como telenovelas, futebol e práticas sexuais. Todos são modos de produção simbólica de valores.
Uma definição, porém, tão genérica de cultura não tem função alguma para a construção de políticas focadas de Estado. Muito menos a alegada definição de que aquilo que colabora para a internacionalização do Brasil e a divulgação de sua simbologia deve ser financiado. Pelo argumento, a TV Globo pode pedir isenção fiscal para as suas próximas telenovelas.
Como não podia deixar de ser, é no campo da cultura que se vê, de forma mais brutal, a deposição de toda e qualquer aspiração crítica e contestadora de certa esquerda brasileira. Fala-se em "quebra de paradigma", mas o Ministério da Cultura apenas implementa o paradigma, cada vez mais hegemônico, de indistinção geral entre arte, entretenimento e mercadoria.
Afinal, há de chamar de "gato" um gato. Estilistas são, acima de tudo, comerciantes donos de loja que organizam sua produção a partir da sensibilidade às demandas de mercado e a exigências de máxima rentabilização de seu capital. Mas grupos de teatro não são empresas, escritores não são comerciantes e um quadro não é uma mercadoria, mesmo que tenha um preço.
As políticas culturais foram criadas exatamente para garantir autonomia para a produção artística contra sua colonização pela lógica mercantil, contra sua restrição à condição de mero entretenimento "cool", além de pen- sar formas de impedir a consolidação de práticas de dirigismo cultural.
Contudo, para que algo dessa natureza fosse possível, estruturas como a Lei Rouanet deveriam ser radicalmente modificadas. Um bilhão e duzentos mil reais foram perdidos pelo Estado para que empresas fizessem políticas de marketing às custas do erário, financiando, principalmente, musicais, Oktoberfest, festas gastronômicas, atividades da torcida do Palmeiras e, agora, desfiles de moda.
Pergunte, no entanto, quanto desse dinheiro foi direcionado à construção de conservatórios de música, bibliotecas ou em auxílio a saraus literários na periferia.
Fonte: IHU Online
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